sábado, dezembro 29, 2007

A cultura de blogue nacional: resposta a José Pacheco Pereira

No Público de 29 de Dezembro de 2007 pode ser visto na sua capa a referência a um artigo de opinião de Pacheco Pereira sobre os blogues e aquilo de que os mesmos são “mostruário”. Aparte todas as possíveis considerações críticas desta nova tendência deste jornal para publicitar nas suas capas artigos de opinião que não possuem importância relevante (ainda no dia anterior, também na sua capa, jazia uma referência a um artigo de opinião de Pinto da Costa, o qual se revelou como insalubre e extremamente pobre...), não podemos deixar de responder concretamente aos conteúdos do artigo deste “nosso” Pacheco Pereira.
Pacheco Pereira tem, em geral, uma opinião negativa dos blogues, revelando que os mesmos tornam os seus autores pessoas iludidas porque quem escreve “acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes.” Pacheco Pereira defende que vivemos numa “cultura de blogue”, a qual possui os defeitos referidos e citados pela voz de Eça de “juízos ligeiros, vaidade e intolerância”. Refere também que os blogues relevam de um “envolvimento narcísico”, relacionado com a vontade que todos têm de dar o seu “toque de Midas” ao constructo ideológico e cultural do nosso país. Por fim, Pacheco Pereira diz: “como também tenho um blogue, deixo aos leitores o julgamento do que se me aplica do que aqui digo”.
Ora, chegamos, portanto, ao ponto culminar da “discussão”. As críticas de Pacheco Pereira são, todas elas, aplicáveis à sua própria pessoa, pelo que não entendo muito bem as razões pelas quais Pacheco Pereira escreve o texto que ora escreveu.
Importante será dizer que o “fenómeno blogue” representa muito mais do que uma fenomenologia cultural específica. Os blogues nascem sempre da necessidade, realmente narcísica, de escrever e tornar público aquilo que é pensado. A realidade é que muitos jovens portugueses possuem uma necessidade inefável de “tornar público” o seu pensamento, achando sempre que o seu “pensar” é único, precursor e originalíssimo. Como não há, neste nosso país elitista, espaço suficiente para a “normal” divulgação dos nossos pensamentos, como não há abertura suficiente à publicabilidade de homens desconhecidos, então os tais jovens portugueses, muitos deles extremamente inteligentes e socialmente conscientes, resolvem criar uma fonte de “expansionismo” idiomático, ou seja, resolvem criar uma fonte de receitas do pensamento.
Tenho defendido muitas vezes que o nosso país tem muito mais pensadores do que aqueles que são realmente “publicáveis”. Os intelectuais do nosso país andam por aí, abundam muito mais do que podemos imaginar. E todos eles querem ter uma oportunidade de publicar, de tornar famoso o seu “pensar”; um pouco à semelhança de tantas centenas de jovens que sonham ser cantores, actores e/ou modelos, com vista ao exercício narcísico de um “projecto de fama”. O blogue surge como resposta à necessidade de publicar e à incapacidade ou insuficiência dos órgãos de Imprensa para dar voz a esses mesmos pensadores. O blogue é muito mais do que a expressão de uma “indústria cultural”. É a expressão de uma necessidade perfeitamente legítima, bem patente nas mentes de tantos proto-pensadores. Se Pacheco Pereira fosse desconhecido, ou seja, se fosse um homem “não publicável”, talvez compreendesse melhor o verdadeiro “objecto” dos blogues. Mas é precisamente porque os homens como Pacheco Pereira, Miguel Sousa Tavares e Vasco Pulido Valente possuem tanto “terreno” em colunas de jornais e revistas, tornando escassa a possibilidade de outros serem publicados, que tanta gente possui a necessidade, emergente, de criar e gerir blogues. Há realmente “vaidade” nos blogues, como sugere Pacheco Pereira, mas, ao contrário do que o mesmo refere, também há muito “material de peso” nesses mesmos blogues abundantes; material esse que todos os dias tenta a sua “ascensão” mas que não consegue verdadeiramente “ascender” ao púlpito.
Também eu criei um blogue. E fi-lo com vista à publicação de materiais não publicáveis em revistas técnicas (porque de natureza menos científica daquela que é necessária à publicação tecnicista). E também eu quero ser publicado. Por exemplo, tenho determinadas expectativas relativas a este mesmo texto... O que há a ter em atenção no “fenómeno bloguista” é à questão dos espaços merecíveis de publicação de tantos “pensadores” não reconhecidos. Somente quando diminuir a pressão do lóbi e do interesse mediático é que irá ser criada a possibilidade de tantos homens poderem, merecidamente, criar Obra na Imprensa. Talvez aí diminua o “peso” dos blogues...

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Do fitness e outros demónios: O corpo desfigurado e a máquina industrial

Quando há uns anos atrás treinava acerrimamente a bendita musculação no imaculado Lisboa Ginásio Clube, estava longe de presumir que, uns anos depois, viria a constituir as primeiras enxadadas de um movimento, fundamentalmente conceptual, com o objectivo de relevar o mundo do fitness enquanto indústria do corpo e maleita social.
É bem sabido que o mundo dos ginásios está em premente evolução, crescimento económico exponencial inquestionável... O que é menos bem sabido, sub-repticiamente conhecido, é que labora, por trás desse negócio do fitness, uma poderosa barganha desconstrutiva, um insaturável poder kitsch de atracção maquiavélica das mentes mais débeis, uma arma de destruição do corpo na sua vertente estrutural mais sensível e profunda.
Tentemos explicar aquilo que ainda não foi compreendido... É indubitável que, em termos funcionais, a prática desportiva apresenta vantagens para a saúde humana. Estas vantagens estão bem condimentadas, demonstradas e justificadas por estudos, fundamentalmente anglo-saxónicos, bem estruturados e mais ou menos qualificados em termos metodológicos. Como é óbvio, esses mesmos estudos tratam de questões puramente funcionantes, de variáveis de funções corpóreas como a frequência cardíaca ou a tensão arterial, assim como o feedback relativo ao estado de dor/sofrimento e/ou de bem-estar. Referimo-nos a factores facilmente mensuráveis, a dados facilmente modificáveis pelas condições de treino e as constantes de condicionamento físico. Assim, só pode ser perfeitamente óbvio que um treino de força muscular resulte no aumento da força, assim como um treino cardiovascular resulte no aumento da resistência cardíaca, tendo sempre em conta que essa mesma força e essa mesma resistência são facilmente mensuráveis, mediante a utilização de instrumentos adequados.
Porém, e é aqui que a ‘história’ verdadeiramente começa, é muito limitativo se falarmos só das variáveis funcionais pelas quais se rege o nosso corpo. Para além da “forma física” enquanto sinónimo de força masculina e elegância dionisíaca, existe uma outra “forma”, aquela que foi assumida pelas mais requintadas expressões artísticas do Renascimento, a “forma” enquanto “estrutura”, enquanto “morfologia”, enquanto “postura”. Fiquemos, portanto, ancorados nesta última palavra: postura. Definida de muitas e variadas maneiras, todos os profissionais de saúde (os verdadeiros profissionais) sabem que o termo postura se refere a uma forma de enquadramento estrutural corporal que varia muito consoante o corpo e a Pessoa que o compõe. A postura, ou seja, o alinhamento corporal, o arrumo posicional, o arranjo estrutural, a morfologia, é diferente de pessoa para pessoa e não há quem possua uma que possa ser considerada perfeita.
Na realidade, a postura, muito mais do que um determinado posicionamento corporal, e decerto muito mais do que uma mera posição da coluna vertebral, depende do estado de mais ou menos tensão e mais ou menos flexibilidade do conjunto das cadeias de músculos e fáscias (cadeias musculares) que desenham e configuram o nosso corpo. Estas mesmas “cadeias musculares” não são enquadráveis nos livros de anatomia e nos manuais convencionais. Aliás, quando a Madame Mézières, uma fisioterapeuta francesa que fundou um método de trabalho postural em 1947, fundou o conceito de “cadeia muscular”, como base explicativa de um conjunto de músculos presentes na parte de trás do corpo sempre fortes e curtos demais, estava já consciente de que o seu modelo, a sua visão, seria profundamente revolucionário. Talvez por isso a sua grande obra tenha recebido o nome, eventualmente pomposo, de “Révolution en Gymnastique Orthopédique”.
O método Mézières, mãe dos métodos de Reeducação Postural, um método que viria a abalar os conceitos da antiga “ginástica sueca” de Per Henrik Ling (1766-1839), viria estabelecer que a postura, e a deformidade postural, deriva do estado de tensão da musculatura posterior. Segundo Mézières, são os excessos musculares que provocam as deformidades posturais, e somente um trabalho holístico de alongamento global das cadeias musculares encurtadas pode trazer “ordem estrutural” a um corpo corrompido pelas hegemonias músculo-tendinosas.
O método Mézières é, portanto, o grande método de Reeducação Postural. Mas não é o único, pois uma série de outros métodos viriam a ser encabeçados por discípulos de Mézières (Bertherat, Godelieve Denys-Struyf, Peyrot, Souchard, Busquet, Nisand, entre outros). E para além disso, paralelamente estaria a ser desenvolvida a “integração estrutural” ou rolfing de Ida Rolf, método anglo-saxónico que viria igualmente a dar origem a uma série de outros métodos-filhos.
Todos estes métodos de Reeducação Postural baseiam-se em princípios de alongamento, relaxamento e libertação mio-fascial. Todos eles se baseiam numa visão individuada do sujeito, sendo que a saúde do corpo músculo-esquelético está dependente do alongamento global de conjuntos musculares diferentemente retraídos em diferentes indivíduos. Para os citados métodos, quase todo o esforço físico significa deformação. Por exemplo, os proponentes de Mézières defendem que o mais leve trabalho com pesos irá aumentar a tensão da cadeia muscular posterior, funcionando tal como uma porta de entrada para a deformidade. Estes argumentos são já uma realidade científica, desde que os estudos electromiográficos demonstraram que é real que a musculatura posterior e da coluna está em tensão permanente. Sendo assim, o paradigma da “fraqueza muscular” como causa para a dor da coluna (ou outras a nível esquelético), secularmente defendido, aparece fortemente abalado. Também abaladas ficam, a meu ver, todas as visões de “saúde” existentes no trabalho de fortalecimento muscular. Ora, é precisamente aqui que surge a grande “questão”... Se o reforço muscular desrespeita as leis da “postura corporal”, então em que pé ficam todas aquelas actividades desportivas praticadas nos ginásios e clubes desportivos, actividades essas quase totalmente baseadas num modelo de fortalecimento e esforço físico condicionante?...
Pena, e isso preocupa-me bastante, é que os diversos profissionais da Educação Física e do desporto, nem sequer conheçam os paradigmas da Reeducação Postural; como tal, a questão colocada atrás não lhes ocorre. Aliás, a grande maioria dos profissionais do desporto permanece ainda no mundo simples de quem pensa que “postura” significa manter as “costas direitas” (os mesmos profissionais que cada vez mais se querem assumir como profissionais de saúde).
Ora, os argumentos apresentados justificam a necessidade de uma revisão dos conceitos da “ginástica sueca”, aliás de todos os conceitos que premeiam a actividade física realizada neste mundo moderno. Se, de certa maneira, certas actividades como o Yoga, o Tai-chi e o Pilates, já poderão constituir um “outro olhar” da questão, não posso deixar de dizer que ainda estamos muito longe de ter uma prática desportiva movida pelas leis Mézières (ou seja, uma prática mais leve, baseada nos princípios do alongamento global e do relaxamento psicossomático, uma prática mais próxima de certos conteúdos holísticos e humanistas...). A meu ver, é mesmo necessária uma verdadeira revolução da prática desportiva, pois uma nova práxis, mais holística e alicerçada na pessoalidade intrínseca a cada sujeito, surge como emergente necessidade.
Mas não é isso o que se passa. A revolução da prática desportiva está a ocorrer precisamente num sentido oposto. A pessoalidade está cada vez mais em jogo e as novas actividades do fitness aparecem desenhadas para reforçar, fortalecer... deformar...
Para além do mais, o fitness aparece, cada vez mais, como um conceito, um produto, e não uma salvaguarda da saúde humana. O fitness reveste-se, crescentemente, de uma linguagem cada vez mais associada ao marketing, sendo que vai vestindo a capa de uma verdadeira indústria. Recentemente, tenho defendido que o fitness consubstancia um exemplo do conceito de “indústria cultural” defendido por Theodor Adorno. E, a julgar pela magnitude do fenómeno, não podemos deixar de ver o mundo do fitness como mais uma expressão da “sociedade de mercado” ou da “cultura de massas”.
No seio desta cultura massificada, em que a obsessão pela “forma física” vai permeando as necessidades íntimas de um cada vez maior número de pessoas, o lugar para o trabalho corporal com vista à saúde está cada vez menos presente na sociedade. Parece só haver lugar para os “termos” mais esteticizantes, que são precisamente aqueles que mais tornam tudo tão maquinal e simplista.
O contexto atrás explicado aparece bem definido pelo conjunto crescente, e bem prolixo, de pessoas que apresentam um corpo maculado pela prática desportiva exagerada, que mais não é do que um corpo cheio de lesões e dores, assim como de desequilíbrios musculares e assimetrias esqueléticas. Muitas pessoas procuram os meus serviços com vista a resolverem problemas que a indústria do fitness gravou nos seus corpos, sem dó nem piedade. E se estas pessoas não estiverem prontas para entrar num trabalho que é claramente morfoanalítico, e como tal lento e pouco dado à atracção própria do marketing, irão facilmente abandonar as sessões de terapia que tenho para lhes dar (preferindo mergulhar no mundo da fisioterapia clássica, concebida para tratar sintomas e não as causas dos problemas, ou então, preferindo mergulhar no mundo mais atractivo das medicinas não convencionais, sendo que estas perpetuam a questão da imagética cultural massificada).
Claro que aquilo que está mal no fitness não é só o facto de o mesmo se basear num conceito de anti-saúde postural. O que está mal no fitness não é só também o facto de perpetuar um pouco essa forma massificada e pop de se viver na sociedade moderna. Outras questões mais específicas advertem para a minha preocupação. O mau profissionalismo, o facto de os diversos instrutores beberem todos da mesma cartilha e eternizarem e propagarem a mesma forma errática de treinar, alongar, mexer... A débil formação dos mesmos instrutores, com muitos deles a não possuírem formação superior, o desrespeito das actividades físicas mais variadas pela normal biomecânica do corpo, a realização de exercícios com intrepidez e risco indubitável para a saúde das estruturas, as denominadas Lesões por Esforço Repetido, e todo um conjunto interminável de razões...
E não podemos esquecer a máquina financeira que alicerça esse mesmo mundo. Por exemplo, os instrutores e empregados do Holmes Place parecem ser tirados do submundo do ‘Metrópolis’ de Fritz Lang ou dos “clones” do ‘Admirável Mundo Novo’ de Huxley: falam todos da mesma maneira, parecem todos funcionar de forma artificial e anti-humana, perdem-se em estratégias de imagem e de mercado (até mesmo no momento de dar as aulas) e gastam um tempo ilimitado em tácticas auto-promocionais.
Ora, não é este o mundo que eu quero para mim! Quero um mundo onde a complexidade, a unicidade e o respeito pelo “corpo frágil” de cada um sejam tidos em conta com uma certa normalidade. Quero um mundo onde figure uma certa atitude reflexiva, assim como uma constante batalha contra o simplismo e a ilusão social.
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Publicado no Jornal 'Semanário', dia 25 de Julho de 2008

sábado, dezembro 01, 2007

Antiginástica: o método de Thérèse Bertherat enquanto conceito do anti-fitness

O termo “antiginástica” roça os limites da curiosidade. Afinal de contas, é bem sabido que o exercício físico é aconselhado por tudo e por todos como uma espécie de panaceia para os problemas que afectam a saúde esquelética do ser humano. E parece não haver dúvidas que o exercício, o treino, a “ginástica”, possuem todos as suas virtudes no esboçar de um corpo condicionado, assaz treinado para reerguer uma “torre de Babel”; sim, o corpo condicionado igualiza o conceito de perfeição, de beleza intransigente, de vivência mais que telúrica do agir concreto... E é este mesmo corpo “perfeito” que, enquanto objecto de consumo que é, é treinado e potencializado até uma máxima de “capacidade” e de auto-servilismo, num paradigma de “forma” completamente contrário ao modelo de trabalho de Bertherat, a grande criadora do conceito e método da “antiginástica”.
Nas últimas décadas, o fitness tem acentuado cabalmente a sua influência na sociedade e no mercado global de consumo. Pode-se, inclusivamente, dizer que, graças às práticas do fitness, o corpo se transformou num perfeito objecto de mercado, uma nova indústria cultural (T. Adorno). Gostaria de, neste momento, citar Jean Baudrillard (“A sociedade de consumo”), que diz, a propósito do corpo como “o mais belo objecto de consumo”, que “a redescoberta [do corpo], após uma era milenária de puritanismo, sob o signo da libertação física e sexual, a sua omnipresença na publicidade, a moda e na cultura das massas – o culto higiénico, dietético e terapêutico com que se rodeia a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objecto de salvação.”
Assim sendo, a indústria do “bem estar”, que granja tantas vezes os limites do “cientificamente aceitável”, e a indústria do fitness – juntas e separadamente – têm vendido uma ideia de corpo enquanto objecto de autonomia libertária relativamente ao monocordismo do mundo contemporâneo, assim como têm produzido um conceito de “corpo condicionado” enquanto condição obrigatória à total imunização à patologia. Que pena que estejam constantemente a converter o corpo num objecto de “culto”, quando seria mais previdente tentar ler as suas verdadeiras necessidades... Embora se baseiem em rigorosas leis da “fisiologia do esforço”, e apesar de tantos estudos avultarem os benefícios cardiovasculares do exercício, não há ainda evidência suficiente que permita ver o fitness como resposta às necessidades do corpo esquelético. Significa isto que a quase totalidade de desportos existentes, assim como as mais propaladas actividades de fitness, não se encontram adequados às exigências de um “corpo frágil”, que é aquele que genuinamente vestimos; o fitness alimenta a ideia de saúde, mas os esforços que desencadeia ao nível do corpo desautorizam as mais basilares leis do funcionamento postural global.
Tentemos explicitar... O método Mézières, o qual revolucionou o campo da medicina e ginástica ortopédica em França a partir dos anos 40, veio criar a noção, actualmente cientificamente comprovada, de que as deformidades posturais se devem a excessos musculares e não a fraquezas musculares, ou seja, as alterações posturais ou estruturais do corpo têm origem no excesso de força de determinados músculos, os quais têm tendência para desenhar uma cadeia na zona posterior do corpo (cadeia muscular posterior). Ora, vários estudos dos anos 90 do século passado demonstraram que a assunção de autores como Mézières e discípulos (Bertherat, Souchard, Busquet, Peyrot, Nisand), segundo a qual todos os esforços musculares contribuem para a deformidade, está absoluta e inegavelmente correcta; significa isto que a saúde estrutural do nosso sistema músculo-esquelético depende sobretudo de actividades que favoreçam o alongamento e o relaxamento, e não de actividades que favoreçam a força e a resistência muscular.
Os dados apresentados, e subsistidos por diversos estudos bem recentes, levam a concluir que a realização da maioria dos desportos ou actividades de fitness existentes poderá acarretar a tendência inequívoca para a deformidade postural. Isto, só por si, já justifica uma certa atitude relativamente a tantos e tantos desportos efectuados (conceito de anti-fitness), os quais, quase todos, valorizam a realização de esforços intrépidos. Em particular, não pode deixar de se condenar o médico que encaminha o utente que sofre de dores lombares para um personal trainer de musculação, ou o professor de Yoga que força a extensão da coluna de um utente com escoliose, desconhecendo que tal postura é absolutamente contra-indicada à condição existente. E estes são apenas dois exemplos bem paradigmáticos. E exemplos não faltam!... Será necessário citar o impacto muscular acrescido de tantas actividades físicas, associado àqueles esforços que estão ligados às “lesões por esforço repetido”?... Por exemplo, quem se atreve a considerar a ginástica acrobática ou os trampolins como um desporto saudável, mesmo para quem não sofre da coluna (mas passará, decerto, a sofrer...)? Quem se atreve a negligenciar os recentes estudos que associam a presença de deformidades à realização de desportos como o voleibol, o basquetebol e outros de carácter assimétrico? E quem se atreve a negar que o desporto de alta competição constitui um artefacto só eventualmente explicável por um excelente profissional de saúde mental?...
Deve, portanto, ser dito que, mesmo os melhores instrutores de fitness, mesmo aqueles que concebem o melhor modelo de saúde e segurança para o utente, todos eles se movem por teorias da prática física que remontam a anos muito anteriores aos da revolução mézièrista anteriormente mencionada. Daí que a actividade de fitness passe por ser condenável per si, mesmo que tenhamos em conta instrutores de alta qualidade.
Ora, é este o conceito de anti-fitness que, de forma primacial, norteia o método da antiginástica de Thérèse Bertherat. Este é, de facto, um método grupal que privilegia a realização de alongamentos globais, o relaxamento muscular, o alinhamento postural constante, a libertação fascial, a (re)construção postural. À semelhança do mais serôdio método “Corpo e Consciência” de Courchinoux, a antiginástica valoriza a consciencialização corporal, com base nos princípios do método Mézières. É, no fundo, a forma como o método e as posturas de Mézières podem ser adaptadas a uma prática grupal, adequadamente respeitadora dos princípios mézièristas, ou seja, é a forma como um novo método de ginástica/fitness (ou será antiginástica/anti-fitness?) pode surgir a partir das leis de trabalho de Mézières, as quais configuram a “grande teoria das Cadeias musculares”.
A obra inicial de Bertherat “Le corps a ses raisons” explana muitos dos princípios enunciados, sendo a única das obras da autora traduzida para português nacional (a obra pode ser encontrada em alfarrabistas com o horrível título “Dê saúde ao seu corpo. A saúde pela antiginástica”). A segunda obra de Bertherat (“Courrier du corps”) refere-se a outros métodos mais ou menos assimiláveis pelos princípios de Mézières. A terceira obra (“Les raisons du corps – garder et regarder la forme”) é a mais lírica de todas as que a autora escreveu. E a obra “Le repaire du tigre” é a que mais se aproxima dos conteúdos do texto presente. Nela, a autora aponta os tantos erros, as tamanhas deformidades que as práticas físicas contemporâneas alimentam, alertando para o facto de todo o esforço alimentar os “vícios do tigre que temos por trás do corpo”.
Aliás, o conceito de “forma” para Bertherat é muito diferente do conceito de “forma física” para o fitness. Para Bertherat e os proponentes da Reeducação Postural, “forma” não significa músculos potentes e elegância feminina; “forma” significa “postura” e “postura” significa um corpo respeitado nas suas forças e inibido das suas tensões... um corpo com história, um corpo com “forma”...

sexta-feira, novembro 23, 2007

Rolfing e Ida Rolf: Integrando as estruturas humanas

Que fique já esclarecido que não pratico ou conheço quem pratique o Rolfing. Nem fui sequer alguma vez “rolfado”. Nem sei se haverá (verdadeiros) rolfistas em Portugal. Mas daí a abdicar de falar do conceito, simplesmente fantástico, do Rolfing, teoria e método de Ida Rolf, vai um grande passo. Falarei, neste texto, da minha experiência de descoberta teorética de uma técnica fantástica, inicialmente denominada de “Integração Estrutural”, mais tarde chamada de Rolfing, em homenagem à sua mentora Ida Rolf.
A leitura da obra “Rolfing. A Integração das Estruturas Humanas” só poderá constituir um ardil do bom profissional que se preocupa com Postura e Globalidade. Não é, na realidade, uma obra obrigatória da formação de um qualquer terapeuta, mas devemos depreender que a sua leitura é fundamental para todo o terapeuta que deseja possuir um certo grau de cultura relativamente à sua arte de intervenção (coisa que não abunda no mundo de muitos fisioterapeutas e outros profissionais holísticos...).
Se adicionarmos à leitura da obra anterior o quase obrigatório complemento “biográfico” de Rosemary Feitis (“Ida Rolf fala sobre Rolfing e realidade física”), podemos ficar com uma ideia já bem denodada daquilo que caracteriza o método e a sua criadora.
Ida Rolf nasceu em 1896, em Nova Iorque, e cresceu no Bronx. Frequentou o Barnard College, formando-se em 1916, no meio da Primeira Grande Guerra. Foi contratada pelo Instituto Rockefeller, tendo mais tarde recebido o título de “doutor” em bioquímica pela Universidade de Columbia. No final dos anos 20, negócios de família, incluindo a administração do inventário do seu pai, forçaram-na a deixar o cargo no Instituto Rockefeller.
Ida Rolf começou a trabalhar com pessoas de forma quase acidental, utilizando conhecimentos de Ioga, osteopatia e homeopatia, os quais foi adquirindo de forma algo “natural” para a sua personalidade de investigadora. Sempre a interessou o princípio da osteopatia segundo o qual “a estrutura determina a função”.
Prosseguirei citando a própria Feitis: “De maneira semelhante, o Rolfing tem por objectivo melhorar as funções modificando a estrutura; mas difere da osteopatia em dois importantes aspectos. Nós “rolfistas” entendemos que os ossos são mantidos no lugar por tecidos moles: músculos, ligamentos, tendões, etc. Se um músculo ficar cronicamente encurtado, puxará o osso a ele ligado para fora do seu ponto natural de equilíbrio. A reposição do osso não é suficiente; o músculo isoladamente e o tecido circundante devem ser alongados para que a modificação seja permanente. Além disso, quando uma parte do corpo está a passar por problemas, o corpo como um todo fica fora do equilíbrio.”
É importante referir que as posturas do Yoga (ásanas) influenciaram decisivamente o método de Rolf. Em termos físicos, o principal objectivo das ásanas de Ioga é aumentar o espaço entre as superfícies de contacto ósseo. Ou seja, o pressuposto do Ioga é que o corpo precisa de se alongar (pena que o mesmo método não faça a distinção entre as diferentes cadeias musculares a alongar...). Durante os anos em que praticou Ioga, Ida Rolf estava a fundamentar a base de todo o seu futuro trabalho; o corpo precisa de se alongar e equilibrar; um corpo equilibrado fará surgir um ser humano melhor.
No entanto, aos poucos, Ida Rolf foi percebendo que as posturas não conseguiam atingir o objectivo de alongar e separar as articulações, que num grande número de casos ocorria uma verdadeira contracção das superfícies articulares. Havia necessidade de alguma outra coisa.
Com a ajuda de vários colaboradores, que foi conhecendo ao longo da sua vida, Ida Rolf criou um método de “libertação mio-fascial”, com base em técnicas de manipulação de tecidos moles. De modo a que o método lhe sobrevivesse, Ida Rolf começou a ensiná-lo a grupos de osteopatas e quiropatas. Contudo, estes últimos entendiam o método enquanto técnica de osteopatia ou quiroprática, o que desagradava a Rolf, pelo facto de esta ver o seu método como uma abordagem da totalidade do ser humano, um método global e independente de todos os outros.
Acrescento, citando mais uma vez Feitis: “Ida Rolf não estava interessada em curar sintomas; o seu objectivo era bem maior. Ela queria nada menos do que criar seres humanos novos e melhores. Os males curar-se-iam por si mesmos; os sintomas desapareceriam à medida que os organismos se tornassem equilibrados. A cura de sintomas desencadeia uma caçada interminável pelo corpo todo. Se, por exemplo, um homem se queixa de um incómodo no ombro, é possível consertar o mesmo com manipulação directa do tecido conjuntivo frouxo dessa região. Dentro de uma semana, o homem estará de volta, queixando-se de um problema no pescoço. Se eliminar o problema do pescoço, ele retornará com uma queixa no braço e, depois desta, no alto das costas, e assim por diante.”
Para Ida Rolf, o equilíbrio corporal dependeria da boa disposição das estruturas corpóreas relativamente umas às outras, e sempre atendendo à relação das peças corporais (ossos e tecidos miofasciais) com a gravidade. Na época em que Rolf estava a compilar as suas ideias, ela começou a esboçar um tipo de tratamento que pudesse ser utilizado para todos os corpos. O seu trabalho seria dirigido para a criação de equilíbrios, começando pela superfície do corpo e atingindo-o gradualmente em maior profundidade. Foi nessa época que ela estabeleceu a sequência de dez horas (ou dez sessões) do Rolfing; desde então, permaneceu basicamente a mesma.
Nesta altura, os diversos alunos de Rolf tentavam sistematicamente roubar o seu trabalho e os seus clientes, para além de efectuarem os seus próprios ensinamentos. Actualmente, o Rolfing constitui marca registada, sendo que o seu ensinamento é da exclusiva responsabilidade do Rolf Institute.
É pena que Ida Rolf nunca tenha contactado com os métodos francófonos de Reeducação Postural, pois tantos estes quanto o Rolfing se norteiam pelos mesmos princípios básicos. Mas é indubitável que, apesar de Ida Rolf não ter efectuado a descoberta de Mézières, assim como não conseguiu perspectivar o corpo numa lógica de cadeias musculares, terá atingido o pleno princípio teorético de que a estrutura determina a função. Para além disso, é preciso dizer que Ida Rolf foi mais longe em matéria de teoria anatomofisiológica; contudo, não possuía uma visão tão holística do corpo quanto aquilo que ela mesma advogava.
Ida Rolf criou um método fantástico. Estabeleceu princípios fantásticos. Demonstrou a importância do papel do tecido fascial. Mas cometeu um erro muito particular: o seu método constitui “chapa rasa” para diferentes doentes. As suas dez sessões de Integração Estrutural compõem uma espécie de “medicamento” interventivo, igual para diferentes doentes, donos de diferentes corpos. O seu método de tratamento pode ir muito mais longe. E possui indubitavelmente todas as possibilidades de uma verdadeira evolução conteudística.

(Consultar: http://www.rolf.org/ ou http://www.rolfing.org/)

quinta-feira, novembro 08, 2007

De Mézières a Nisand: A Reconstrução Postural

Começo por dizer que, enquanto fisioterapeuta mézièrista que sou, sinto que tenho o direito de falar dos diversos métodos de Reeducação Postural, principalmente aqueles que advieram do método original da fisioterapeuta Françoise Mézières. Mas devo dizer que não sou formado neste grande método de que vou falar, a Reconstrução Postural, nem conheço qualquer português que tenha formação no mesmo; o que é uma lamentável pena... pois este é um método brilhante, uma técnica que conseguiu chegar ao âmago daquilo que se pode considerar como um verdadeiro método reeducativo.
O método da Reconstrução Postural foi criado em 1992, a partir do método Mézières. O primeiro constitui não só uma fonte de renovação metodológica relativamente ao método original (Mézières), mas também o resultado de um trabalho exploratório e casuístico especialmente significativo, o que pode ser explicado pelo facto de a Reconstrução Postural ter sido desenvolvida num contexto académico (nomeadamente, no contexto da formação base e pós-graduada da Universidade Louis Pasteur – Estrasburgo, França).
Como já terá sido referido anteriormente neste espaço, o método Mézières compõe uma “revolução” na forma de ver as deformidades posturais, sendo que as vê enquanto resultado de excessos musculares, os quais estão ligados ao papel da musculatura postural, de natureza tónica, excessivamente forte, e proeminente sobretudo na região posterior do corpo.
Se o método Mézières aparece historicamente relacionado com uma descoberta referente ao ano de 1947 e à grande obra “Révolution en Gymnastique Orthopédique” (1949), o método da Reconstrução Postural deriva deste primeiro, muito mais tarde nos anos 90, sem nunca se ter interposto a ele, antes acrescentando, revalorizando e homenageando, e realizando os necessários acrescentos atentatórios de uma evolução.
A Reconstrução Postural difere do método Mézières em diversos aspectos, nomeadamente (Callens, 2004; Jesel, 1999; Nisand, 1997, 2004):
(a) Enquanto Mézières se referia à existência de três cadeias musculares posturais (a grande cadeia posterior, a cadeia ântero-interna – diafragma e psoas – e a cadeia braquial), Nisand acrescenta e descreve pormenorizadamente uma nova cadeia muscular – a cadeia anterior do pescoço.
(b) Nisand propõe uma nova interpretação da lógica das compensações corporais (reacções anormais de defesa à dor e ao alongamento excessivo), salientando a importância de um conjunto de respostas neurológicas aquando do movimento (respostas evocadas) e o contributo dos centros neurológicos centrais para o surgimento das deformidades. Assim sendo, o tratamento passa não só pelo alongamento global das cadeias musculares (Mézières), mas também pelo trabalho de consciencialização corporal com base na estimulação neuro-sensorial (ou seja, na modificação do padrão de excitabilidade muscular das cadeias posturais), de modo a que os alongamentos possuam em efeito de neuroplasticidade adaptativa eficaz e não só em efeito de modificabilidade temporária do tónus.
(c) O método da Reconstrução Postural propõe uma outra forma de interpretar o aparecimento de dor. A dor não tem origem na própria deformidade, mas sim na incapacidade que a estrutura hipertónica (rígida) tem de se deformar.
A partir destas diferenças, o método de tratamento por Mézières por meio do estiramento em “contracção isométrica excêntrica” (contracção estática anti-gravidade) transforma-se num meio de tratamento por “solicitação activa induzida”, ou seja, da postura trabalhada passivamente passa-se para um trabalho de carácter mais activo, mediante a facilitação de padrões de postura por meio de “pontos-chave” (à semelhança do papel dos mesmos “pontos-chave” de controlo do método Bobath de tratamento das disfunções neurológicas), partes do corpo que são sujeitas a movimentos de grande amplitude com o objectivo de induzir ou solicitar determinado padrão postural. As posturas em Reconstrução Postural são obtidas, portanto, a partir de pontos periféricos precisos, e são mantidas não por tempos necessariamente muito prolongados (Mézières), mas até ao ponto em que se verifique a normalização tónica. O agravamento da dismorfia é, ao contrário do que ocorre com o método Mézières, uma condição obrigatória para se obter a postura normal, é um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural correcto.
Diferenças metodológicas levam a diferentes técnicas, sendo que muitas das manobras mézièristas foram modificadas ou suprimidas: o mézièrista tende a evitar as compensações, enquanto que o “reconstrutor” tende a lidar com todas as posturas que possam ser efectivas no sentido de se obter uma inibição do padrão; o mézièrista identifica a dismorfia como algo “anormal”, enquanto que o reconstrutor identifica a dismorfia como um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural vantajoso; o mézièrista tende a encontrar uma postura correctiva e a mantê-la o máximo de tempo possível, enquanto que o reconstrutor tende a manter a “postura” só até que exista exaustão e extinção da resposta evocada (normalização tónica); as autoposturas são impensáveis na Reconstrução Postural, pois o próprio sujeito não consegue educar as suas próprias reacções tónicas correctivas; os proponentes da Reconstrução Postural não falam de “correcção morfológica” como os mézièristas, mas sim de “restauração morfológica”, a qual tem por base não o alongamento mio-fascial correctivo mas sim o alongamento com vista à normalização de padrões de activação tónica das cadeias musculares.
Resta dizer que a Reconstrução Postural constitui o mais científico de todos os métodos de Reeducação Postural. É incontável o número de artigos e o número de publicações de outro género construídos com base em estudos de Nisand e colegas. Infelizmente, os Senhores da Reconstrução Postural não têm publicado em inglês; somente em francês e em revistas francesas, o que complica o conhecimento mais universal do método. Aquele que constitui o paradigma científico de Mézières, ou seja, a Reconstrução Postural, é também o mais desconhecido dos métodos reeducativos. Talvez o seu desconhecimento derive da humildade dos investigadores. Talvez derive da humildade do método. Mas, se depender de mim, este método receberá toda a fama e reconhecimento que o mesmo merece.

sábado, outubro 27, 2007

Fisioterapeuta a cinco euros à hora...

Sim, é um facto! Chegámos ao ponto mais negro da nossa profissão. Na clínica Moifisa, onde trabalhou uma grande amiga minha e excelente fisioterapeuta durante uns anos, despediu a sua fisioterapeuta quando a coisa "não estava a render" (parece que tratar dez doentes à hora não era suficiente) e, agora, colocaram uma nova fisioterapeuta a cinco euros à hora. Era mesmo eu que iria trabalhar por tal quantia... Por cinco euros à hora, prefiro lavar escadas (aliás, receberia mais do que isso...)! Não há dúvidas de que os fisioterapeutas são os principais culpados de todos estes acontecimentos. Mais do que o fisiatra da respectiva clínica, o qual paga esta riqueza à funcionária, a culpa maior é mesmo da própria profissional que desceu ao ponto a que desceu. E parece que no Norte andam a entregar currículos nos quais o terapeuta refere que quer trabalhar e que não se importa de receber menos do que o terapeuta que lá trabalha... Não há mesmo dúvidas nenhumas: os fisioterapeutas são mesmo leais e moralmente íntegros! Já nem a Vergonha é suficiente... A propósito... ouvi dizer que cinco euros à hora é também o que um terapeuta ganha na Global Fisio. E é isto o que pagam numa empresa gerida pelo Sr. Dr. Luís Marques, fisioterapeuta de grande "dote ético" o qual advoga que, na sua empresa, "ser bom não é suficiente" (sic). Sim senhor! Se acrescentarmos à nossa profissão os "ricos" fisioterapeutas que aparecem nos concursos de televisão a fazerem "lindas figuras" culturais (como o que ontem apareceu no concurso "Sabe mais do que um miúdo de dez anos?" - aliás, concurso já por si estúpido e estupidificante), então posso dizer que a nossa profissão atingiu o Nirvana da excelência...

quinta-feira, outubro 11, 2007

O mobbing ou o assédio moral no trabalho

«Nas sociedades do nosso mundo ocidental altamente industrializado, o posto de trabalho constitui o último campo de batalha em que uma pessoa pode matar a outra sem nenhum risco de chegar às barras de um tribunal» (Heinz Leymann)

Grassa por esse mundo fora um conjunto copioso de formas diversas de agressão, do tipo psicológica e/ou moral, sendo que os mesmos fenómenos não têm sido suficientemente atendidos na sua importância na sociedade contemporânea. Mas é bem verdade que existe nas instituições modernas, em particular nas organizações portuguesas, o registo de um fenómeno social a que Hirigoyen deu o nome de “assédio moral”. Ora, é certo que o “assédio moral” tem sido traduzido por um conjunto de artefactos de “terrorismo psicológico”, constantes em diversos contextos, conhecidos por bullying nas organizações escolares e por mobbing nas organizações laborais. Se é certo que ambos os fenómenos são comuns, é preciso atender a que existe uma desigualdade no tipo de estudo dos mesmos, sendo que, se o bullying está particularmente visado por uma certa “tendência modal de estudos”, o mobbing continua a constituir uma temática praticamente “não estudada” em Portugal.
O termo mobbing foi introduzido na literatura, nos anos 80, por Heinz Leymann, psicólogo de origem alemã a viver na Suécia, para descrever formas severas de assédio nas organizações. Para Leymann, o mobbing consiste em actuações hostis frequentes e repetidas no local de trabalho, visando sistematicamente a mesma pessoa (a “vítima”). Segundo ele, o mobbing tem origem num conflito que degenera. Analisa-o como uma forma particularmente grave de stresse psicossocial.
O mobbing consiste, portanto, numa forma de agressão ou terrorismo, de natureza psicológica e/ou psicossocial, que é realizada no contexto de trabalho, por parte da entidade patronal (referente ao denominado “assédio vertical descendente”, segundo Hirigoyen), por colegas (“assédio horizontal”, segundo Hirigoyen) ou por um subordinado (“assédio ascendente”, segundo Hirigoyen).
É de referir as investigações clássicas de Leymann na Suécia e de Hirigoyen na França. Leymann estabeleceu que 3,5% dos assalariados suecos eram vítimas de assédio, tendo também estimado que 15% dos suicídios eram devidos a mobbing. O autor, o qual divulgou os seus dados na obra “Mobbing, la persécution au travail” (1996, Seuil), introduziu a seguinte definição conceptual de mobbing: “acções repetidas e repreensíveis, ou nitidamente negativas, dirigidas contra os empregados de uma maneira ofensiva e que podem conduzir ao seu afastamento da comunidade local de trabalho.” Já Hirigoyen divulgou os dados de um grande inquérito realizado em França na obra “Malaise dans le travail. Harcèlement moral: démêler le vrai du faux” (1998, Syros) (traduzido para português para “O assédio moral no trabalho. Como distinguir a verdade”, Edições Pergaminho): 29% de casos entre os 36 e os 45 anos, 43% entre os 46 e os 55 anos, e 19% após os 56 anos; 70% de mulheres vítimas para 30% de homens vítimas; em 58% dos casos, o assédio provinha da hierarquia; na maioria dos casos, o fenómeno originou a “baixa compulsiva”, tendo acabado em afastamento do local de trabalho (36% dos casos) ou despedimento (20%). Os grandes sectores de assédio moral são a “gestão, contabilidade, funções administrativas” (26%), a “saúde” (9%) e o “ensino” (9%).
O mobbing (Leymann) ou “assédio moral no trabalho” (Hirigoyen) é, portanto, um fenómeno de grande expressividade e não choca se for afirmado que o mesmo é bastante comum em Portugal, em particular nas grandes empresas e no contexto da saúde. Enquanto fisioterapeuta que sou, tenho assistido a muitas manifestações de mobbing na minha vida laboral, tanto no respeitante a terapeutas como no respeitante a enfermeiros, por parte de médicos e superiores hierárquicos.
Não posso esquecer o meu percurso de somente quatro meses de trabalho no Hospital Cuf Infante Santo. No serviço de Fisioterapia do respectivo hospital, as terapeutas coordenadoras sujeitavam os terapeutas trabalhadores a um tratamento verdadeiramente “patológico”, sendo que éramos vítimas de um trato animalesco, para além da total ausência de regras de deontologia profissional. Os doentes vinham para os terapeutas, passando pelas “chefes”, extremamente indispostos, tal era o tratamento recebido. Mas não tinham melhor tratamento por parte dos “súbditos”, pois estes viviam num constante ambiente de stresse e humilhação. Vi muitas vezes a minha “chefe” a desautorizar profissionais à frente dos doentes, em assuntos de carácter não laboral mas sim de ordem técnico-científica. Mais tarde, quando me insurgi contra o controlo provocado por uma terapeuta “mais velha”, fui chamado à atenção; nessa “chamada” foi-me dito que, enquanto profissional mais novo, devia respeito aos mais velhos, sendo que estes últimos “tinham mais direitos, por estarem há mais tempo na instituição”. Fui desconsiderado, tendo sido inclusive objecto da “mentira” e da “afronta”. O trato a que tive “direito” teve repercussões psíquicas tardias, tendo inevitavelmente atingido a minha auto-estima.
A vergonha e a humilhação a que tantos profissionais são sujeitos levam a que exista uma sensação de “perda do sentido”, e até mesmo à desvitalização psíquica, à “dissonância cognitiva” (Festinger), à angústia momentânea e à depressão crónica. O “assédio moral” no trabalho predomina no mercado português, atingindo muito particularmente os jovens licenciados, os mesmos que tanto lutaram nas Universidades para acabarem os seus cursos e agora labutam no “caminho da pedra” (na realidade laboral tão distante da realidade teorética que se apregoa nos cursos superiores...), no contexto do trabalho precário e num ambiente em que predomina a obrigatoriedade da “negação do Eu” identitário (Arno Gruen), transformados em “meros trabalhadores substituíveis” sem importância moral e fragrância científica.
O “assédio moral no trabalho” atinge tantos trabalhadores!... Mas a resposta dos mesmos labuta em silêncio. Temos, claro, a resposta mais global do subdesenvolvimento das empresas nacionais, nas quais qualquer tentativa de se ser “o melhor”, de se “ser criativo”, acaba por esbarrar na inveja e no tratamento aversivo.
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Publicado parcialmente no 'Jornal de Negócios', dia 08 de Setembro de 2008

sábado, setembro 29, 2007

A indústria do corpo e a sociedade de consumo

O corpo humano ocupa um lugar de destaque nas sociedades modernas. A tentativa de o dominar e transformar é, actualmente, maior do que alguma vez foi. Aliás, os homens necessitam de dominar o seu próprio corpo de modo a sentirem que todo o espaço por ele ocupado é igualmente objecto de domínio. Para além dos espaços físicos e do conjunto prolixo das diversas mundividências em que se move o ser humano, o controlo da “forma” do corpo, e das sensações emanadas pela sua concretude, protagoniza uma das grandes metas do homem moderno. Na realidade, o homem hodierno pretende transformar o seu corpo num objecto maquinal, capaz de responder às mais incessantes necessidades estéticas e de prazer. Dentro desta dimensão transformista e reformista do objecto corporal, o corpo torna-se verdadeiramente um “objecto de consumo”, sendo que se torna vulnerável às mais opressivas culturas industriais e de mercado.
Segundo Jean Baudrillard, a descoberta do corpo, “após uma era milenária de puritanismo, sob o signo da libertação física e sexual, a sua omnipresença na publicidade, na moda e na cultura das massas – o culto higiénico, dietético e terapêutico com que se rodeia, a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objecto de salvação, substituindo literalmente a alma nesta função moral e ideológica. Significa isto que o corpo não é uma evidência, o corpo é um facto de cultura.”
O corpo é, portanto, palco de uma série de destemperos próprios da fenomenologia social, estando os respectivos fenómenos ou artefactos do “uso corpóreo” estritamente associados à indústria, ao mercado e à cultura de massas. Em particular, a linha de corpo enquanto “forma”, tem dominado todos os sectores da sociedade contemporânea, até um ponto em que, a meu ver, o corpo e as práticas narcisistas com ele associadas podem ser incluídas no grupo das “indústrias culturais” de Adorno.
Falando, então, da “indústria do corpo” enquanto forma, ou seja, da utilização do corpo como objecto narcísico (ao serviço pleno do “princípio do prazer”), podemos referir três grandes culturas industriais que têm tomado palco na nossa sociedade de uma forma assaz sub-reptícia: a indústria do “bem estar”, as medicinas não convencionais e o condicionamento físico.
A indústria do “bem-estar” tem ganho tantos adeptos que tem-se tornado fonte de lucro incomensurável para imensos “profissionais”. Esteticistas, massagistas e terapeutas proponentes de imensas “técnicas orientais” têm possibilitado a edificação de um conceito artificial de “saúde”, levando a que o termo perca o seu estatuto em prol de uma certa ideia de “prazer efémero”. E não são poucas as vezes que as pessoas, pobres para o Serviço Nacional de Saúde e as mais variadas terapêuticas do sistema, demonstram possuir meios para realizarem as suas massagens relaxantes e/ou de emagrecimento (para além das incontáveis depilações, saunas, limpezas de pele, tratamentos anti-celulíticos, spas e outros “feitiços da mente”), assim como as massagens Tui-na ou ayurvédica, ou para receberem os seus toques de Shiatsu e de reflexologia (estas ditas de “massagens terapêuticas”... mas “terapêuticas” em quê?... naquilo que advogam ou no padrão de relaxação e escapismo que concedem?...). Neste último ponto, a indústria do “bem-estar” colide com outra indústria (semelhável à primeira): a das medicinas ditas “não convencionais”.
As medicinas não convencionais são também, e sobretudo, a expressão de uma indústria cultural. Aparentemente são uma outra forma de “ciência”, uma alternativa recomendável ao tratamento de patologias refractárias aos tratamentos mais ortodoxos. Mas, na prática, consistem em terapias não radicalmente diferentes das mais convencionais, sendo que tendem a sobressair comercialmente única e exclusivamente devido ao poder da “imagem”; imagem essa que propõe um ícone místico a fenómenos parcialmente explanáveis pela ciência médica (obviamente, de forma menos “explosiva” e atractiva). Assim sendo, terapias progressivamente afamadas como a quiroprática, a termoterapia, a aeoroterapia, os banhos, a helioterapia, a cromoterapia, as massagens terapêuticas, a magnetoterapia, a terapia floral de Bach e a homeopatia possuem um poder social de fundo “estético” muito semelhável às alegóricas medicinas orientais (acupunctura, digitopunctura, auriculopunctura, reflexologia, iridologia, moxibustão, Qigong e Tai-chi, shiatsu, pulsos chineses, ioga e Ayurveda), podendo inclusive roçar a “seriedade” da medicina tradicional indígena (curandeirismo, xamanismo, macumbas, espiritismo, bruxaria) e de um certo “poder curativo da mente” (relaxamento, hipnotismo, toques curativos, sofrologia, magia e cartomancia).
Resta falar da indústria do “condicionamento físico”. Desde tempos imemoriais que o homem tenta medir os seus limites físicos, tentando aperceber-se das barreiras que constrangem o corpo humano. Essa tem sido a filosofia das Olimpíadas e de todas as competições desportivas realizadas. Mas, na realidade, o desporto de competição existe sobretudo para alimentar uma “certa ideia de cultura”, nomeadamente a cultura menos ortodoxa e mais simplista do gesto motor. Por mais que tentemos justificar epistemologicamente a natureza do esforço físico, não conseguimos dar uma razão aceitável a quem não aceita os perigos da actividade física ilimitada. E por mais desculpas que os adeptos da prática física arranjem para sustentar a prática de actividades de fitness, esta não consegue afirmar-se sem o apoio de uma grande máquina comercial e imagética. Na realidade, a maioria das actividades do dito fitness desrespeitam o corpo e as leis posturais pelas quais ele se rege, mas a assunção de um artefacto estético-narcisista tem levado a que tantas práticas sejam realizadas sem dó nem piedade. Portanto, step, cycling, body sculpt, powerfit, body pump, body push, body defense, totalfitness, new balance, X55, são tudo sinónimos do mesmo alarvismo com que tantos instrutores tentam “delinear” o corpo dos utentes. Claro que há também o Pilates, o Yoga, o Chi-Kung e o Tai-chi, entre outras modalidades ditas “holísticas”... Mas quando será que vamos perceber que até mesmos essas modalidades aparecem impiedosamente desenhadas sob o jugo de um marketing eticamente inaceitável? Quando vamos perceber que o verdadeiro holismo se centra numa coisa muito mais profunda – e decerto menos pop – do que uma modalidade de treino corporal?...
Temos, portanto, que o corpo humano parece estar a ser consumido pela cultura do “kitsch”. O corpo, essa matéria tão frágil e tão “humana”, parece estar a ser desvirtuado, simplificado, desmemoriado, pelo poder de uma indústria sem limites, pelo poder de uma imagem... imagem falsa de uma realidade tornada pseudo-realidade. Nesta pseudo-realidade, tornada real a tantos olhos, o corpo e a mente passam a ser urdidos de uma forma telúrica e carnal, mas não menos solipsista e farsista. Esta realidade constitui o palco de mitos e ilusões publicitárias, ícones de uma sociedade alienada, acrítica e doente. Como proceder para evitar isto? Como obrigar as pessoas a tomarem consciência da verdadeira realidade? E como havemos de proceder para proteger as pessoas da sua própria ignorância?...
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(versão original integral)
Publicada uma versão reduzida e ligeiramente alterada deste artigo no 'Expresso' de 06 de Outubro, sob o título "A indústria do corpo e a ideia de consumo".
Publicada uma versão aumentada deste artigo no "Semanário" de 12 de Setembro de 2008, sob o título "A indústria do corpo e a sociedade de consumo: as três 'indústrias culturais'".

terça-feira, setembro 11, 2007

A respiração: sua importância

Todas as pessoas têm bem presente na sua mente a importância que reside no acto vital da respiração. Já o mesmo não se pode dizer no respeitante às peculiaridades fisiológicas do acto, assim como às suas particulares vicissitudes.
Não importa, pois claro, gastar muitas letras a explicar o acto da respiração enquanto processo fisiológico. Chegará, talvez, dizer que o processo respiratório se faz de dois tempos: (a) a inspiração, que corresponde à entrada do ar e subsequente expansão pulmonar, a qual resulta da contracção do diafragma e descida da sua parte central ou tendinosa (o centro frénico), e (b) a expiração, que corresponde à saída do ar, normalmente um processo passivo que resulta do relaxamento dos músculos inspiratórios e à recuperação da amplitude elástica dos pulmões.
Também não será muito importante falar da complexidade anatómica do aparelho respiratório, mas talvez seja relevante referir que, em termos físicos, desportivos e terapêuticos, ou melhor dizendo em termos mecânicos, nos podemos referir a três tipos de respiração: a respiração costal superior (que se faz sobretudo ao nível do tórax superior), a respiração costal inferior (que muitos referem como respiração torácica, por se efectuar numa zona relativamente ampla do tórax) e a respiração diafragmática (a qual se faz sobretudo nas zonas abdómino-diafragmáticas).
Em termos históricos, os dissemelhantes tempos respiratórios, assim como os distintos tipos mecânicos de respiração, têm sido diferentemente valorizados, tanto por diferentes culturas como em tempos determinados.
É tão grande a quantidade de funções que dependem directa ou indirectamente de uma boa ventilação que desde sempre, a respiração, símbolo da vida e da saúde, esteve no centro das preocupações do Homem. A cada época a medicina preocupou-se com isto desde a mais longínqua antiguidade. Chineses e hindus começaram por privilegiar o desenvolvimento da expiração. Depois, no Ocidente e durante o século XX, foi a vez da inspiração; aliás, a ginástica clássica moderna obstinou-se a reforçar o volume torácico e a força dos músculos inspiratórios... negligenciando completamente o facto de que para encher os pulmões é necessário antes esvaziá-los do seu ar viciado (Souchard).
De facto, quase todos os desportos contemporâneos se centram no desenvolvimento da capacidade inspiratória. Mesmo na Fisioterapia respiratória, é comum utilizarem-se diversas modalidades e/ou técnicas de inspiração forçada ou profunda, sendo que só ultimamente se tem dado alguma atenção ao tempo expiratório.
Podemos ver, por exemplo, pelo Yoga, a importância que certas medicinas menos convencionais dão ao acto respiratório amplo, inclusivo de uma inspiração profunda, feita do abdómen para o tórax (contemplativa, portanto, de diversos tipos respiratórios mecânicos) e de uma expiração igualmente profunda, feita em sentido inverso.
Na realidade, os métodos de reeducação postural, como o método Mézières e os de Souchard, centram-se num tipo de respiração completamente diferente desta última. Estes métodos dão primazia à expiração, sendo que tentam inibir o processo inspiratório activo. Ou seja, podemos dizer que a última grande atitude científica e reeducativa relativamente ao tipo de respiração praticada se centra, efectivamente, na efectuação de uma respiração torácica superior, com um tempo expiratório máximo e activo (dependente da contracção abdominal), o qual pode ser realizado estufando a barriga (permitindo ao máximo o prolongamento da expiração), contraindo os músculos abdominais essencialmente dinâmicos (rectos e oblíquos do abdómen) ou recolhendo o ventre (permitindo a contracção do músculo transverso abdominal e soalho pélvico), seguido de uma inspiração passiva. Ou seja, a reeducação postural centra o processo respiratório a um nível costal (à semelhança do Pilates), mas a um nível muito profundo no respeitante ao tempo expiratório; como o tempo expiratório é máximo, a inspiração subsequente é fundamentalmente passiva e não activa. Portanto, o que estou a dizer é que a respiração apropriada, ou seja, aquela que podemos considerar como de carácter reeducativo (no sentido postural do termo), corresponde à respiração inversa àquela que temos tendência a realizar no nosso dia a dia.
A respiração do dia a dia é essencialmente corrente, mas com tendência para inspirações mais prolongadas, principalmente quando são realizados esforços. Acontece que essa é uma função normal e hegemónica, a qual, num tempo reeducativo, tem de ser distorcida ou desembaraçada. Isto significa que, durante o processo de intervenção reeducativa, a respiração que se realiza durante horas e horas a fio tem de ser tornada paradoxal, com ênfase na expiração. E isto porquê? Porque a respiração com ênfase na inspiração, a qual mantemos em grande parte do tempo da nossa vida, tende a fixar o diafragma numa posição de bloqueio inspiratório. E este mesmo bloqueio está na origem das mais diversas deformidades posturais. Não devemos esquecer que a cadeia respiratória é central a todas as outras cadeias musculares. O alongamento global das cadeias só poderá ser realizado durante a expiração, quando o diafragma está a ser adequadamente distendido.
Assim sendo, também é fundamental sublinhar que todos os grandes esforços deverão ser realizados em expiração. Só assim se evita o bloqueio diafragmático e, simultaneamente, se facilita a contracção abdominal indutora de estabilidade vertebral. E aqui estamos todos no mesmo barco, pois é certo que os exercícios de musculação ou as diferentes actividades de fitness tendem a valorizar a expiração nas fases de maior esforço muscular.
Muitas pessoas não imaginam qual a importância do diafragma na construção de deformidades posturais e/ou patologias respiratórias.
Pela sua relação privilegiada com a coluna lombar e dorsal inferior, e uma relação indirecta com a cervical (feita através do sinergismo com os músculos inspiratórios da escápula e da nuca), o diafragma é um músculo lordosante. E obviamente que a necessária deslordose só se consegue pela expiração (e isto deve contemplar todas as irredutíveis compensações imanescentes). Pela sua relação íntima com as diversas cadeias musculares, o diafragma serve de transporte a compensações musculares deformadoras, entre a cadeia posterior e as cadeias anteriores. Por exemplo, a cifose torácica pode ter origem na retracção dessas cadeias anteriores, mas essas mesmas retracções tiveram necessária origem a nível posterior. Eventualmente, a directa retracção do diafragma ou dos músculos inspiratórios acessórios levam a que as aumentadas lordoses cervical e lombar se pareçam com uma (falsa) cifose torácica.
A lordose aumentada, derivada da contracção diafragmática na inspiração, é também o resultado da relação de sinergia entre o músculo inspiratório e o conjunto dos músculos paravertebrais (mas também esta relação pode ser perspectivada como um exemplo das já aludidas ligações entre o diafragma e as diversas cadeias musculares).
A respiração correcta é também apanágio do bom funcionamento do aparelho respiratório. No mundo da fisioterapia é comum dizer-se que patologias restritivas (como a atelectasia ou certos quadros infecciosos) se devem tratar com recurso à inspiração forçada e que as patologias obstrutivas (como a asma ou a doença pulmonar obstrutiva crónica) se devem tratar por meio da expiração forçada. Mas eu diria que ambos os tipos de patologia ganham se forem tratadas com recurso a uma expiração prolongada. Esta permitirá o correcto alongamento da musculatura inspiratória, facilitando o seu trabalho e evitando a retracção indutora de insuficiência respiratória e consequente hiperventilação.
Ficam, então, presentes as vantagens de se realizar uma boa respiração, que tende cada vez mais a ser feita em torno de um percurso expiratório máximo.

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Publicado na 'Saúde Actual', Setembro/Outubro 2007

sexta-feira, agosto 31, 2007

A indústria do fitness (II) – o exemplo do Holmes Place

Na quinta-feira, dia 27 de Agosto do presente ano, foi publicado no Público um artigo meu intitulado “A indústria do fitness: a falácia da nova medicina”. Ao que parece, e muito ao contrário do que esperava, o artigo teve um grande impacte, sobretudo sobre uma certa classe, dita de “ensino da motricidade”. Fiquei surpreendido com tal impacte. Primeiro, porque a classe dos trainers não costuma ser muito dada à leitura de jornais a sério (para alguns, terá sido, indubitavelmente, a primeira vez que compraram o Público). Segundo, porque, a meu ver, o conjunto das afirmações que proferi não visava um grupo profissional especificado. Gostaria, se me fosse possível, de me explicar perante tal conjunto de “ofendidos”, pois uma clarificação urge ser realizada.
O mundo do fitness e do “bem estar” constitui uma das mais hostis indústrias da sociedade moderna. Movidos por uma série de mitos, associados a um certo conceito de beleza e à necessária vivência de uma série de sensações físicas mais ou menos efémeras, um determinado tipo de público, cada vez mais numeroso em Portugal e na maioria dos países ocidentais, tem acorrido ao consumo, cada vez mais intrépido, de “produtos” relacionados com a prática gímnica e a utilização de “Health Clubs”.
Desde os desportos mais clássicos até às actividades dos modernos estúdios de fitness, saliento, tal como o fiz no artigo anteriormente referido, que desporto algum foi construído visando a saúde dos seus praticantes. Aliás, o conceito de “condicionamento” está mais de acordo com aquilo que podemos objectivar na prática desportiva contemporânea, e não tanto o conceito de “saúde”. Porém, uma certa necessidade de legitimação da actividade física, acrescentada por um crescente ensejo de reconhecimento profissional do “professor de educação física”, tem levado a que os instrutores de fitness tenham adquirido o hábito de se imiscuírem nos conceitos de “saúde” e “bem estar”, sem que possuam preparação ou formação adequada para tal. Mas, a questão não releva só da preparação do instrutor de fitness. A questão é exponencialmente mais revolucionária e emblemática do que aquilo que foi entendido pelos críticos do artigo citado.
Quando, no relativo ao artigo de dia 27, referi as diversas consequências deletérias do desporto, estava a referir-me sobretudo ao contexto músculo-esquelético da realidade corpórea. Acontece que, perante as recentes teorias da Reeducação Postural (que surgiram, inicialmente, nos anos 40, pela mente da Madame Françoise Mézières), tornou-se concreta a ideia de que a saúde esquelética do corpo está dependente da boa saúde da sua estrutura ou arquitectura ósteo-muscular. Ou seja, ao contrário do que se poderia pensar, no respeitante às estruturas músculo-esqueléticas do corpo, não é tanto a função motriz que faz o “órgão” funcionar bem, mas sim o “órgão”, adequadamente bem estruturado, que permite a função harmoniosa. As teorias que refiro inscrevem-se na ideia de que o corpo – e respectiva arquitectura óssea – está dependente do equilíbrio estrutural de um conjunto de grupos musculares de natureza postural, chamados de “cadeias musculares”. O método Mézières, o qual revolucionou o campo da medicina e ginástica ortopédica em França a partir dos anos 40, veio criar a noção, actualmente cientificamente comprovada, de que as deformidades posturais se devem a excessos musculares e não a fraquezas musculares, ou seja, as alterações posturais ou estruturais do corpo têm origem no excesso de força de determinados músculos, os quais têm tendência para desenhar uma cadeia na zona posterior do corpo (cadeia posterior). Ora, vários estudos dos anos 90 do século passado demonstraram que a assunção de autores como Mézières e discípulos (Bertherat, Souchard, Busquet), segundo a qual todos os esforços musculares contribuem para a deformidade, está absoluta e inegavelmente correcta; significa isto que a saúde estrutural do nosso sistema músculo-esquelético depende sobretudo de actividades que favoreçam o alongamento e o relaxamento, e não de actividades que favoreçam a força e a resistência muscular.
Os dados apresentados, e subsistidos por diversos estudos bem recentes, levam a concluir que a realização da maioria dos desportos ou actividades de fitness existentes poderá acarretar a tendência inequívoca para a deformidade postural. Isto, só por si, já justifica a minha atitude relativamente a tantos e tantos desportos efectuados, os quais, quase todos, valorizam a realização de esforços intrépidos. Em particular, não posso deixar de condenar o médico que encaminha o utente que sofre de dores lombares para um personal trainer de musculação, ou o professor de Yoga que força a extensão da coluna de um utente com escoliose, desconhecendo que tal postura é absolutamente contra-indicada à condição existente. E estes são apenas dois exemplos bem paradigmáticos. E exemplos não faltam!... Será necessário citar o impacto muscular acrescido de tantas actividades físicas, associado àqueles esforços que estão ligados às “lesões por esforço repetido”... Por exemplo, quem se atreve a considerar a ginástica acrobática ou os trampolins como um desporto saudável, mesmo para quem não sofre da coluna (mas passará, decerto, a sofrer...)? Quem se atreve a negligenciar os recentes estudos que associam a presença de deformidades à realização de desportos como o voleibol, o basquetebol e outros de carácter assimétrico? E quem se atreve a negar que o desporto de alta competição constitui um artefacto só eventualmente explicável por um excelente profissional de saúde mental?...
Devo, portanto, dizer que, mesmo os melhores instrutores de fitness, mesmo aqueles que concebem o melhor modelo de saúde e segurança para o utente, todos eles se movem por teorias da prática física que remontam a anos muito anteriores aos da revolução mézièrista anteriormente mencionada. Daí que a actividade de fitness passe por ser condenável per si, mesmo que tenhamos em conta instrutores de alta qualidade. Ora, podemos imaginar como tudo se torna tão mais grave perante todas aquelas situações em que a prática física é comandada pelo eixo da estultícia. Instrutores não licenciados, professores licenciados mas sem adequada formação em saúde/patologia, tudo assomado às condições definidas por uma indústria sabidamente agressiva e arrivista, tudo isto concorre para o facto inegável de que o fitness é incompatível com a saúde.
Mas tenhamos em conta um exemplo bem paradigmático de uma “indústria do fitness”: vamos atender ao exemplo flagrante do Holmes Place.
O Holmes Place constitui uma multinacional dedicada ao fitness, fervorosamente competitiva e brutalmente agressiva. Basta ver como se comportam os seus funcionários. Parecem tirados da América taylorista. Todos vestidos da mesma forma, todos a falarem da mesma maneira, todos com o mesmo esgar e atitude, como se fossem todos clones de um qualquer sistema mercenário. Acontece que, desde aquele funcionário que nos vem convencer a realizar um contrato (utilizando todas as estratégias possíveis para que não percebamos que se trata efectivamente de um contrato, associado à obrigatoriedade de se pagar um ano inteiro de prestações por transferência bancária) até ao próprio instrutor, todos os funcionários do Holmes Place parecem seres robóticos, iguais aos clones do “Admirável Mundo Novo” ou aos seres “sub-terrestres” do ‘Metropolis’ de Fritz Lang. Em especial, os instrutores de fitness, muitos deles não licenciados, visto serem formados pelo próprio Holmes Place, acabam por agir todos da mesma maneira errónea; por exemplo, o mesmo alongamento dos músculos ísquiotibiais feito de forma não alinhada é realizado por todos a todos da mesma maneira, perpetuando-se o erro. Mas continuemos... Os instrutores das aulas em grupo parecem também todos clones sem criatividade, e o pior de tudo é que estes mesmos instrutores não estão preparados para fazer face a situações inesperadas (e não vale a pena argumentarem que possuem um curso de ‘primeiros socorros’, pois isso só serve a situações muito particulares...). Aliás, eles parecem mais concentrados em promover as aulas do que em primarem pela perfeição técnica.
Ora, será que tudo é mau e não há solução à vista? Claro que há. E se muitos dos indivíduos que me criticaram estivessem atentos a tantas outras coisas que tenho publicado (sobretudo em revistas técnicas e no blog), poderiam perceber que muito tenho lutado para se criar um novo conceito de treino, mais centrado na qualidade pessoal do instrutor ao serviço da saúde do corpo, segundo as leis da sua dinâmica postural. A resposta está, portanto, na realização de “actividades de baixo impacto”, com especial preocupação com o alongamento segundo as leis de Mézières (ora, é claro que isto pressupõe que os instrutores deixem de ser verdadeiros ignorantes em matérias de “Postura” e de treino de “alongamento”, passando a obter, sabe-se lá como, mais formação do que aquela que têm recebido; pois, para o caso de ainda não terem entendido, “postura” é muito mais do que “endireitar” determinada pessoa).
Resta desejar a todos os meus críticos as maiores felicidades na respectiva vida pessoal. No respeitante à vida “profissional”, não parecem ser suficientemente felizes. A grande taxa de respostas e de reacções perante o meu artigo só demonstra que “algo não está bem”. Bem, tanto que fica por dizer!... Mas, em breve, irão ouvir falar mais do meu movimento “anti-fitness”.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Clarificação

Relativamente ao artigo que hoje foi publicado no Jornal Público e que se encontra em baixo no blog ("Indústria do fitness: a falácia da nova medicina"), é importante tornar algumas coisas mais claras. Eu não sou necessariamente contra o conjunto das práticas do fitness. Eu sou é contra a forma como essas práticas são realizadas correntemente nos ginásios. Ainda ontem tratei um doente, com problemas de ordem postural, que tinha sido encaminhado por um médico para um personal trainer de musculação no Holmes Place. Ora, malvados sejam estes médicos ignorantes que desconhecem por completo aquilo que se faz nos ginásios (para além do facto de não entenderem que o paradigma musculação está quase sempre errado na questão do tratamento de deformidades)!
Em termos práticos, gostaria de ver a indústria do fitness ser preenchida por profissionais de nível qualificado. Os fisioterapeutas são, regra geral, profissionais bem formados, bem capazes de ser excelentes instrutores de fitness (neste caso fitness seguro), assim como brilhantes personal trainers (neste caso, poderiam dar uma componente “clínica” ao treino); seria óptimo para muitos fisioterapeutas que não têm grandes oportunidades de trabalho, tal como seria ideal para os próprios atletas. Portanto, apesar de não corresponder bem ao nosso desejo de trabalho, a intervenção no fitness e na indústria do bem estar (não deixando sempre de ser uma verdadeira indústria) constitui uma oportunidade de trabalho para os fisioterapeutas.

terça-feira, agosto 21, 2007

Só existe a cadeia posterior!

Para todas aquelas pessoas que continuam a duvidar que tudo no nosso corpo (e postura) depende fundamentalmente da nossa cadeia posterior, não deixem de se lembrar da “lição da cobra”. É um ser extremamente flexível, capaz de grandes deformações corpóreas. Consegue elevar-se e, quando se prepara para o ataque, coloca uma verdadeira postura cifo-lordótica. A lordose sustenta-a e a cifose (“abertura de asas”) surge como uma compensação. Como resultado, a serpente horizontaliza o seu olhar. Ora, atenção ao seguinte facto: a serpente não possui musculatura anterior, somente posterior. A serpente só tem cadeia posterior e, não fosse a sua grande flexibilidade, ela teria a tal postura cifo-lordótica “estruturada”. Ora, é um dado interessante para quem duvida que uma cifose pode ter origem num encurtamento da cadeia posterior. Aprendamos, portanto, com a natureza e sua parcimónia. Para mais, nós já fomos, outrora, seres reptilianos; o desenvolvimento da "cadeia anterior" constitui algo muito recente, falando em termos filogenéticos (ela adveio do nosso bipedismo). Já a cadeia posterior corresponde a algo dominante na natureza (não fosse essa a condição necessária ao "levantamento estatutário")...

quinta-feira, agosto 16, 2007

A toca do tigre

É o nome do quarto livro de Thérèse Bertherat, o qual acabo agora de ler. É o meu preferido, a seguir ao primeiro “Le corps a ses raisons”. É o mais pragmático de todos, incluindo diversos dados sobre o “tigre” que a todos nos controla (o “tigre” corresponde, obviamente, à dominante “cadeia muscular posterior”). Fala abertamente dos perigos da prática física tal como ela é realizada nos ginásios, insistindo num ponto preciso: todos os esforços, mesmo os da musculatura anterior, contribuem para fortalecer o nosso “tigre”; aliás, Bertherat aponta constantemente para a ambiguidade existente na palavra “forma”, sendo que a mesma palavra possui sentidos dissemelhantes para o terapeuta (mézièrista) e para o desportista. Bertherat descreve relativamente bem, apesar de forma bastante simplista, a constituição do “tigre”, diferenciando-o de outros músculos (ou cadeias) menos poderosos. Refere também os “cúmplices” do tigre, nomeadamente os rotadores internos dos membros e o diafragma. Apresenta, igualmente, imagens de alongamentos, compensações, testes e métodos de estiramento correcto.
Este livro de Bertherat, o mais ilustrado de todos, constitui uma referência obrigatória de todos os terapeutas que se interessam pela “postura”. Aliás, constitui ou devia constituir uma referência obrigatória para todos os que estão, de alguma maneira, envolvidos no tratamento ou treino do corpo. Ela é bem explícita a explicar por que é que os diferentes desportos contribuem mais para a “deformação do corpo” do que para a sua saúde... Ela está bem determinada em mostrar a realidade real das coisas, tão pouco conhecidas desse mundo incrédulo e impiedoso que é o do “fitness”.
Livros como este, esquecidos no tempo e num qualquer lugar soturno, compõem a “verdade” das coisas, tal como já ninguém reconhece. São livros revolucionários, escritos por pessoas corajosas, mas infelizmente são desprezados em prol de uma forma de ver a actividade física claramente “militar” (dominante no mundo contemporâneo). Quem reconhecerá que a “verdade dos factos” não está nesse mundo do “fitness”, onde os fisioterapeutas têm papel quase ausente, mas sim nos imbricados caminhos da “Reeducação Postural”?...

segunda-feira, agosto 06, 2007

Para reflectir

Remunerações

Fisioterapeuta (pelo menos bacharel): ganha no máximo 10 euros/hora numa clínica privada (poucos ganham mais)
Instrutor de musculação + cardio (não precisa de ser licenciado): ganha pelo menos 15 euros/hora no Holmes Place (nível 1)
Instrutor de Pilates/Fitness (tb não precisa de ser licenciado): de 15 euros a 25 euros/aula, sem ter em conta "cursos" privados

Não há dúvidas, tenho de me render ao mundo do fitness: trabalhamos menos, temos menos responsabilidades, divertimo-nos mais e não temos de aturar as "mordomias" de certos profissionais...

domingo, agosto 05, 2007

"Ab King" e outras idiotices do “fitness”

Tenho já manifestado muitas vezes o meu desconsolo relativamente aos exercícios e actividades realizados no conceito do “fitness”, mas nunca me dei ao trabalho de criticar por escrito aquela que é uma das piores invenções, nomeadamente em termos de máquinas de abdominais.
Muitas vezes, tenho realçado a importância da criação de um órgão de regulação ética da publicidade; o que, infelizmente, permanece sem existir... isto num país cujo Governo está cada vez mais interessado em aumentar as hostes de controle da Comunicação Social. Mas adiante... Uma das mais comuns “brincadeiras” da publicidade, um “engano de alma” absoluto, corresponde aos anúncios das máquinas de abdominais. Que fique desde já esclarecido que, no ponto de vista dos modelos fisioterapêuticos de Reeducação Postural, os músculos abdominais devem ser fortalecidos, mas com recurso à respiração e não a exercícios abdominais! Mas mesmo que pudéssemos considerar saudável a realização de exercícios abdominais – e não esquecendo que o conceito de “abdominais” é extremamente abrangente (não será o Pilates um trabalho de abdominais? É, mas um trabalho abdominal profundo), e os exercícios a que se referem os anúncios incluem essencialmente o treino dos músculos rectos do abdómen (musculatura superficial) – posso dizer que não há qualquer necessidade de utilizar máquinas de abdominais para realizar um trabalho dessa musculatura. Há, sim, necessidade de se ser bem instruído no respeitante à realização desses exercícios... algo que raramente é feito!
Eventualmente, poderíamos conceber que algumas máquinas abdominais poderiam ser vantajosas, no sentido de certos objectivos como o apoio da cabeça durante a realização do trabalho do tronco... Mas, uma máquina em particular, o “Ab King”, máquina cujo anúncio tem passado na televisão com muita regularidade, constitui a coisa mais idiota inventada em termos de realização de abdominais. Isto porque a máquina em si e o movimento que ela proporciona não permite realizar a flexão do tronco, mas sim flexão das ancas, pois o movimento constitui um fechamento do ângulo compreendido entre as ancas e o tronco sem praticamente flexão alguma da coluna dorsal (portanto, não há "abdominal"). E, como se a dita máquina não fosse já por si extremamente mal pensada num ponto de vista biomecânico, ainda por cima a dita permite a realização de extensão da coluna para além do neutro. Ou seja, aquilo que os publicitários referem como uma vantagem da máquina, a possibilidade de trabalhar também os músculos extensores, não só contraria todos os princípios que defendemos em Reeducação Postural (fortalecer musculatura hipertónica para quê?...), como permite a realização de um “erro de sistema” que até os instrutores mais ignorantes podem reconhecer: a determinado momento, o desportista realiza hiperlordose da coluna lombar (vejam-se as imagens televisivas, com a coluna lombar lordosada e bem longe de estar apoiada), não só porque os membros inferiores estão muito descidos mas também porque existe puro e duro exagero da amplitude.
Ora, será que vale a pena estar a “destruir” o corpo em nome de uma barriga mais lisa (o que é por si um grande mito, pois perdemos barriga se perdermos gordura corporal, e perdemos gordura se realizarmos actividade aeróbia prolongada, não perdemos gordura numa área do corpo pelo facto de estarmos a trabalhar especificamente aquela área... ou seja, de uma vez por todas, as pessoas que aprendam que “fazer abdominais para reduzir a barriga” é puro mito, pura patetice)? E quem serão os “génios” que inventaram tal máquina? Será que os mesmos conhecem o termo “biomecânica”? E onde estão os profissionais de saúde e de Educação Física para explicar que a dita máquina é um engodo publicitário (mais um entre tantos!...)? Onde está a responsabilidade profissional? As pessoas devem ser protegidas de anúncios como estes, principalmente quando não as podemos proteger da sua própria ignorância...

quinta-feira, agosto 02, 2007

A indústria do fitness: a falácia da nova medicina

Em primeiro lugar, é preciso salientar que, aparte esse tão usado e reciclado estrangeirismo (“fitness”), também as palavras “nova” e “medicina” deveriam vir acompanhadas de aspas, porventura incontáveis aspas e reticências; isto porque não só a prática gímnica não constitui verdadeira “nova arte”, como o termo “medicina” se refere a uma actividade profissional de cambiantes constituintes extremamente complexas e multidimensionais. Mas este texto não pretende definir conceitos. Este é mais um texto de alerta, de um “alerta” que desfalece, que desprimora, que raramente ousa tocar os augúrios conteudísticos da comunicação social ou da opinião pública. E falo de um alerta relevante: falo do perigo da prática gímnica, tal como preconizada actualmente na nossa sociedade.
Desde tempos imemoriais que a prática física tem acompanhado o evoluir da sociedade, em inúmeros aspectos mais ou menos formais. Por exemplo, com o surgimento das cidades-estados na antiguidade do século VIII a.C., os jogos tornaram-se uma actividade comum e importante da vida em sociedade. Chamados para a guerra a qualquer momento, os cidadãos das cidades-estados guerreiras procuravam sobreviver através de uma boa preparação física e coragem. Por outro lado, os Gregos tinham uma unidade de língua e cultura que celebravam com festivais abrilhantados por competições de atletismo, sendo que o mais importante tinha lugar em Olímpia, principal templo de Zeus.
Durante milénios, a prática física perpetuou-se, estando sempre mais ou menos associada à prática de um ou mais desportos específicos, actividades físicas de certo modo sincopadas segundo um código determinado. Mais recentemente, a prática física tem sido vista sobretudo enquanto prática motora, sendo que o conceito de Educação física tem sido preterido a favor do conceito de “ciência da motricidade”, com origem em Merleau-Ponty e continuidade nacional em Manuel Sérgio. Nos seus livros sobre “epistemologia da motricidade humana”, Manuel Sérgio reforça o carácter holístico da pragmática desportiva, vista como prática multimodal e multi-existencial.
Independentemente de ter sido ou não bem sucedido o esforço de alguns de transformar a “prática desportiva” numa arte da condição humana, é inegável que a realização de desportos tem influenciado marcadamente a evolução da nossa sociedade.
Acontece que nunca e em tempo algum se realizou um esforço tão grande como o actual para estudar e divulgar os efeitos e benefícios do desporto sobre a saúde humana. É talvez por isso que certas especialidades médicas começam a proliferar – como a medicina desportiva – e certos cursos de “ciências da motricidade” começam a virar-se para a dimensão da saúde e do bem estar. É talvez agora relevante sublinhar que jamais um desporto foi concebido em termos das suas potencialidades para a saúde do Homem. Todos os desportos ditos “clássicos” possuem uma história própria que não passa, de forma alguma, pela estruturação de um conjunto de gestos com vista à saúde do sistema esquelético do Homem.
É, portanto, aqui que começa a problemática da tão aspirada síntese entre desporto e saúde. A saúde não pode ser conseguida somente pela prática suave de determinados desportos, pois, efectivamente, não há, em termos biomecânicos e cinesiológicos, um desporto que possa ser considerado como uma actividade perfeita (em termos fundamentais de saúde esquelética do Homem). Para além disso, também é frustre a pretensão de se querer que um instrutor de “fitness” constitua um profissional de saúde. O desporto possui inúmeros benefícios, mas esses mesmos benefícios só são conseguidos pela prática arraigada de componentes específicas e bem estudadas de treino desportivo. E ainda devemos considerar que a obtenção de saúde num plano do corpo (ex. cardiovascular) acarrete prejuízo de outro plano corpóreo (ex. músculo-esquelético)...
Muito mais grave que a prática mais ou menos formal de um desporto é a massificação do treino dito de “fitness”. Refiro-me à musculação e a todos os variados ingredientes de uma massa acrítica de actos embrutecidos (com nomes todos eles o mais estrangeiros possíveis). Com gravidade muitas vezes não valorizada, o utente dos ginásios é atendido e seguido por um instrutor muitas vezes sem formação superior, num ritual de treino profundamente desmesurado. Todos os dias observo, nos meus próprios treinos físicos, o erro e a palermice de tantos e tantos exercícios “prescritos” ao desportista. São os exercícios de “fortalecimento das costas” (forçando a obtenção de posturas anormais e claramente patológicas), os alongamentos feitos rapidamente e sem controlo do alinhamento, os movimentos não fisiológicos, os gestos forçados e repetitivos sem qualquer razão de ser, para não citar mais coisas... Pelo que tenho visto, e pela minha avaliação de fisioterapeuta, a grande maioria das actividades realizadas no contexto de ginásio são impróprias para a saúde humana.
Mas, ao mesmo tempo que ocorre a massificação da prática desportiva, com quase meio milhão de portugueses a praticar uma qualquer actividade e com milhares de ginásios abertos ao público, a medicina dita “clássica”, aquela que se preocupa com a fisiologia normal e não tanto com o corpo “condicionado”, perde uma já longa e polémica batalha. Os atestados médicos, indispensáveis desde 1999 para quem queria inscrever-se num ginásio, deixaram de ser obrigatórios, cabendo ao cliente responsabilizar-se pelo seu estado saudável, uma medida que, logicamente, os proprietários das academias desportivas aplaudem.
Ora, é preciso entender que ao retirar por completo a responsabilidade do médico à actividade desportiva do utente, estamos a promover o abandono da sua saúde e a sua perda nos meandros da máquina confrangedora do “fitness” e seus “profissionais”. Estamos, portanto, a entregar um potencial doente cardíaco às mãos de um instrutor não licenciado ou fracamente licenciado que subordina o cliente a correr numa passadeira sem controlo adequado de determinados parâmetros. Estamos a entregar uma doente com uma artrose dos membros inferiores aos famosos “saltinhos” daqueles estúpidos mini-trampolins de VivaFits e companhia. Estamos a entregar um indivíduo com perturbações posturais a um “personal trainer” ou outro instrutor que pensa que reeducação postural consiste em endireitar à força o seu cliente (como tantas vezes tenho visto em aulas de Yoga ou de Pilates). E assim por diante...
Temos, portanto, o mundo do “fitness” ao serviço incrédulo da saúde dos portugueses. E ao que parece os portugueses gostam destas actividades, pois não pára de crescer o número de clientes das academias desportivas. O que muitas destas “vítimas” não sabem é que a indústria do “fitness” é extremamente agressiva. E não possui a mínima vergonha da forma como trata os seus clientes. A meu ver, é impossível separar o mundo do desporto do mundo da saúde. Para mim, que sou profissional de saúde e motricidade, não consigo ver as coisas sem a perspectiva da motricidade e da postura ao serviço da saúde humana. Não corro pelo condicionamento, como ninguém deveria correr ou fazer correr. Corro pela saúde das pessoas e pelo respeito às suas capacidades.
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Publicado no Jornal Público, dia 23 de Agosto de 2007

quarta-feira, julho 25, 2007

Levantando pesos: o grande modelo de treino terapêutico e desportivo

A musculação é provavelmente o mais praticado dos desportos ou actividades de ginásio. Independentemente se nos referimos ou não à sua versão intitulada “Culturismo”, não há quase nenhum praticante de actividades gímnicas que não tenha levantado uns pesos, assim como não há quase nenhum fisioterapeuta que não tenha empregue o trabalho de pesos na recuperação dos seus doentes. Percebamos que o trabalho de pesos pode ajudar no ganho de vitalidade e controlo motor; será fundamental na recuperação de fracturas e todas as condições que tendam à flacidez, assim como será condimento obrigatório de todo o desportista que queira cultivar um corpo mais “belo”. Mas o treino de pesos não é obrigatório para a maioria das condições de trabalho em fisioterapia. Daí não se perceber por que é que o fisioterapeuta persiste numa obsessão irracional de “fortalecer”, quando, na realidade, o doente quase sempre necessita é de uma “reeducação funcional” (seja o doente ortopédico, seja o doente neurológico).
Muitos fisioterapeutas deveriam perceber que jamais o treino de resistências pode ser utilizado com vista à melhoria da Postura, assim como é impossível conseguir uma melhoria do alinhamento de uma articulação por meio do treino de pesos. O treino de força possui uma metodologia muito interessante mas é desnecessário à maioria das condições com que lida o fisioterapeuta, principalmente se o mesmo treino for de cariz analítico e não funcional.
Mas deixemos as coisas bem claras! Enquanto praticante que sou de actividade desportiva, posso dizer que, por vezes, não consigo resistir ao levantamento de pesos. Como antigo praticante de culturismo, posso dizer que, para mim, a musculação é o mais interessante dos desportos existentes (e é mesmo um desporto com cariz próprio e autónomo). Adoro a musculação e já fui viciado na mesma. Enquanto pessoa, possuo um gosto inefável pelo treino de pesos e outros irracionais. Contudo, enquanto terapeuta, e ainda mais enquanto terapeuta que se interessa por Reeducação Postural, tenho muito pouco a defender na prática do treino de força. E não tenho reservas em dizer que, quase sempre, o treino de força possibilita uma certa estética, em detrimento da saúde!

sábado, julho 21, 2007

As estações do corpo

“As estações do corpo”. É o título do terceiro livro de Thérèse Bertherat, criadora da “antiginástica”. É, provavelmente, o mais enfadonho dos três que já li da autora. Tem uma certa qualidade literária, mas, talvez por isso mesmo, não consegue fugir à maçada de uma leitura pouco técnica, pouco “terapêutica”. A obra não fala de métodos, não fala de casos. Esboça a temática das “estações comportamentais do corpo” ou da forma como o corpo reage e funciona nas diferentes estações do ano, e segundo diferentes ritmos (inicialmente externos e depois internos). Neste ponto, a obra, assim como todo o método de Bertherat, antecipa a inclusão de questões relacionadas com a “medicina tradicional chinesa” nos métodos de Reeducação Postural (assim sendo, o senhor Courchinoux não é, de forma alguma, iniciático no tratamento destas questões). Com um tom bastante pessoal, e um tanto afectivo, a obra toca-nos, apesar de não possuir o esplendor técnico dos seus primeiros livros.
A propósito da temática das “cadeias musculares”, gostaria de passar um excerto de um capítulo do livro, o qual fala da natureza das cadeias posterior e anterior do corpo (repare-se na natureza apriorística da informação seguinte, real nos seus preâmbulos, mas um tanto fora de prazo no seu desenvolvimento):
“Se, em lugar de lendas, prefere a realidade anatómica, saiba que temos na parte de trás do corpo uma possante cadeia muscular, que vai do crânio aos calcanhares, e mais além, pois ela prende-se sob os pés e segura os dedos na sua trama.
Essa cadeia, como um tecido sem falha, estende milhares de fibras de um lado ao outro do corpo, mas somente na parte de trás. As fibras dessa cadeia muscular prendem-se nos nossos ossos por tendões sólidos. Encaixam-se umas nas outras, sobrepõem-se em camadas ajustadas, estão admiravelmente dispostas, com simetria, de cada lado das vértebras.
Ao se contraírem, comandam todas as articulações, todos os movimentos. As fibras musculares dessa cadeia – posterior – têm uma constituição muito robusta, excepcional. São capazes de se contraírem com força e, quando contraídas, é muito difícil afrouxarem.
Com efeito, essa cadeia pode tornar-se uma verdadeira cilada na qual nos atiramos. Ficamos emaranhados nas fibras dos nossos músculos, presos como o coelho que cai na armadilha cujos laços vão-se apertando à medida que ele se debate.
Na frente, tudo é bem diferente. Não há cadeia anterior [aqui está um ponto discutível...], mas sim músculos isolados que caminham separados ao longo, (...), sobre o nosso pescoço, peito, abdómen e parte dianteira das coxas. (...)
Atrás, os músculos da cadeia posterior, bem organizados, agrupados, solidários entre si, pretendem participar de todos os nossos movimentos. (...) Ao se contrair, forçosamente [a cadeia posterior] diminui de comprimento. Se a musculatura estiver permanentemente contraída estará permanentemente mais curta.
A composição química e a aparência dos músculos modifica-se. De apenas rígidos, tornam-se contraídos, encolhidos. Os nossos músculos, repito, comandam as articulações; são eles que fazem mexer os ossos do esqueleto e, por conseguinte, são eles, e somente eles, que dão ao nosso corpo a forma que tem. Ao aproximar as articulações, os músculos são capazes de dobrar a coluna, mantê-la arqueada, exagerar as curvaturas e achatar as vértebras.
As bordas ósseas das vértebras, juntadas à força, comprimem os nossos “discos” delicados, sensíveis, e a raiz dos nervos, mais sensível ainda. (...)
Enquanto atrás se desenrola esta cena – dramática – o que fazem os músculos da frente? Bocejam, os músculos da frente. Estão inibidos pelos seus parceiros-antagonistas que os proíbem de agir. Aumentam de volume, ficam mais pesados entre os seus tendões. Diante dos olhos, lá os temos flácidos e molengas. Concluímos apressadamente que toda a nossa musculatura é muito fraca e precisa de ser corrigida.
Na verdade, a musculatura gosta de ser tratada com tacto e inteligência. Gosta de ser compreendida. Os músculos que ficam atrás só precisam de ser afrouxados, alongados. Os músculos da frente não precisam de nada. [outra parte questionável...]. Se são fracos é porque as contracções dos seus antagonistas impedem que, por sua vez, eles se contraiam. São, desse jeito, submetem-se a essa lei, a esse mecanismo peculiar. Solte a cadeia aferrolhada que existe atrás e verá que, na frente, os músculos deixados em liberdade conseguirão, sozinhos, mudar de forma, mudar de aspecto.
É detrás que a forma do nosso corpo se decide [princípio mézièrista basilar]. Somos esculpidos por trás e quase sempre amassados sem complacência.”