sexta-feira, agosto 31, 2007

A indústria do fitness (II) – o exemplo do Holmes Place

Na quinta-feira, dia 27 de Agosto do presente ano, foi publicado no Público um artigo meu intitulado “A indústria do fitness: a falácia da nova medicina”. Ao que parece, e muito ao contrário do que esperava, o artigo teve um grande impacte, sobretudo sobre uma certa classe, dita de “ensino da motricidade”. Fiquei surpreendido com tal impacte. Primeiro, porque a classe dos trainers não costuma ser muito dada à leitura de jornais a sério (para alguns, terá sido, indubitavelmente, a primeira vez que compraram o Público). Segundo, porque, a meu ver, o conjunto das afirmações que proferi não visava um grupo profissional especificado. Gostaria, se me fosse possível, de me explicar perante tal conjunto de “ofendidos”, pois uma clarificação urge ser realizada.
O mundo do fitness e do “bem estar” constitui uma das mais hostis indústrias da sociedade moderna. Movidos por uma série de mitos, associados a um certo conceito de beleza e à necessária vivência de uma série de sensações físicas mais ou menos efémeras, um determinado tipo de público, cada vez mais numeroso em Portugal e na maioria dos países ocidentais, tem acorrido ao consumo, cada vez mais intrépido, de “produtos” relacionados com a prática gímnica e a utilização de “Health Clubs”.
Desde os desportos mais clássicos até às actividades dos modernos estúdios de fitness, saliento, tal como o fiz no artigo anteriormente referido, que desporto algum foi construído visando a saúde dos seus praticantes. Aliás, o conceito de “condicionamento” está mais de acordo com aquilo que podemos objectivar na prática desportiva contemporânea, e não tanto o conceito de “saúde”. Porém, uma certa necessidade de legitimação da actividade física, acrescentada por um crescente ensejo de reconhecimento profissional do “professor de educação física”, tem levado a que os instrutores de fitness tenham adquirido o hábito de se imiscuírem nos conceitos de “saúde” e “bem estar”, sem que possuam preparação ou formação adequada para tal. Mas, a questão não releva só da preparação do instrutor de fitness. A questão é exponencialmente mais revolucionária e emblemática do que aquilo que foi entendido pelos críticos do artigo citado.
Quando, no relativo ao artigo de dia 27, referi as diversas consequências deletérias do desporto, estava a referir-me sobretudo ao contexto músculo-esquelético da realidade corpórea. Acontece que, perante as recentes teorias da Reeducação Postural (que surgiram, inicialmente, nos anos 40, pela mente da Madame Françoise Mézières), tornou-se concreta a ideia de que a saúde esquelética do corpo está dependente da boa saúde da sua estrutura ou arquitectura ósteo-muscular. Ou seja, ao contrário do que se poderia pensar, no respeitante às estruturas músculo-esqueléticas do corpo, não é tanto a função motriz que faz o “órgão” funcionar bem, mas sim o “órgão”, adequadamente bem estruturado, que permite a função harmoniosa. As teorias que refiro inscrevem-se na ideia de que o corpo – e respectiva arquitectura óssea – está dependente do equilíbrio estrutural de um conjunto de grupos musculares de natureza postural, chamados de “cadeias musculares”. O método Mézières, o qual revolucionou o campo da medicina e ginástica ortopédica em França a partir dos anos 40, veio criar a noção, actualmente cientificamente comprovada, de que as deformidades posturais se devem a excessos musculares e não a fraquezas musculares, ou seja, as alterações posturais ou estruturais do corpo têm origem no excesso de força de determinados músculos, os quais têm tendência para desenhar uma cadeia na zona posterior do corpo (cadeia posterior). Ora, vários estudos dos anos 90 do século passado demonstraram que a assunção de autores como Mézières e discípulos (Bertherat, Souchard, Busquet), segundo a qual todos os esforços musculares contribuem para a deformidade, está absoluta e inegavelmente correcta; significa isto que a saúde estrutural do nosso sistema músculo-esquelético depende sobretudo de actividades que favoreçam o alongamento e o relaxamento, e não de actividades que favoreçam a força e a resistência muscular.
Os dados apresentados, e subsistidos por diversos estudos bem recentes, levam a concluir que a realização da maioria dos desportos ou actividades de fitness existentes poderá acarretar a tendência inequívoca para a deformidade postural. Isto, só por si, já justifica a minha atitude relativamente a tantos e tantos desportos efectuados, os quais, quase todos, valorizam a realização de esforços intrépidos. Em particular, não posso deixar de condenar o médico que encaminha o utente que sofre de dores lombares para um personal trainer de musculação, ou o professor de Yoga que força a extensão da coluna de um utente com escoliose, desconhecendo que tal postura é absolutamente contra-indicada à condição existente. E estes são apenas dois exemplos bem paradigmáticos. E exemplos não faltam!... Será necessário citar o impacto muscular acrescido de tantas actividades físicas, associado àqueles esforços que estão ligados às “lesões por esforço repetido”... Por exemplo, quem se atreve a considerar a ginástica acrobática ou os trampolins como um desporto saudável, mesmo para quem não sofre da coluna (mas passará, decerto, a sofrer...)? Quem se atreve a negligenciar os recentes estudos que associam a presença de deformidades à realização de desportos como o voleibol, o basquetebol e outros de carácter assimétrico? E quem se atreve a negar que o desporto de alta competição constitui um artefacto só eventualmente explicável por um excelente profissional de saúde mental?...
Devo, portanto, dizer que, mesmo os melhores instrutores de fitness, mesmo aqueles que concebem o melhor modelo de saúde e segurança para o utente, todos eles se movem por teorias da prática física que remontam a anos muito anteriores aos da revolução mézièrista anteriormente mencionada. Daí que a actividade de fitness passe por ser condenável per si, mesmo que tenhamos em conta instrutores de alta qualidade. Ora, podemos imaginar como tudo se torna tão mais grave perante todas aquelas situações em que a prática física é comandada pelo eixo da estultícia. Instrutores não licenciados, professores licenciados mas sem adequada formação em saúde/patologia, tudo assomado às condições definidas por uma indústria sabidamente agressiva e arrivista, tudo isto concorre para o facto inegável de que o fitness é incompatível com a saúde.
Mas tenhamos em conta um exemplo bem paradigmático de uma “indústria do fitness”: vamos atender ao exemplo flagrante do Holmes Place.
O Holmes Place constitui uma multinacional dedicada ao fitness, fervorosamente competitiva e brutalmente agressiva. Basta ver como se comportam os seus funcionários. Parecem tirados da América taylorista. Todos vestidos da mesma forma, todos a falarem da mesma maneira, todos com o mesmo esgar e atitude, como se fossem todos clones de um qualquer sistema mercenário. Acontece que, desde aquele funcionário que nos vem convencer a realizar um contrato (utilizando todas as estratégias possíveis para que não percebamos que se trata efectivamente de um contrato, associado à obrigatoriedade de se pagar um ano inteiro de prestações por transferência bancária) até ao próprio instrutor, todos os funcionários do Holmes Place parecem seres robóticos, iguais aos clones do “Admirável Mundo Novo” ou aos seres “sub-terrestres” do ‘Metropolis’ de Fritz Lang. Em especial, os instrutores de fitness, muitos deles não licenciados, visto serem formados pelo próprio Holmes Place, acabam por agir todos da mesma maneira errónea; por exemplo, o mesmo alongamento dos músculos ísquiotibiais feito de forma não alinhada é realizado por todos a todos da mesma maneira, perpetuando-se o erro. Mas continuemos... Os instrutores das aulas em grupo parecem também todos clones sem criatividade, e o pior de tudo é que estes mesmos instrutores não estão preparados para fazer face a situações inesperadas (e não vale a pena argumentarem que possuem um curso de ‘primeiros socorros’, pois isso só serve a situações muito particulares...). Aliás, eles parecem mais concentrados em promover as aulas do que em primarem pela perfeição técnica.
Ora, será que tudo é mau e não há solução à vista? Claro que há. E se muitos dos indivíduos que me criticaram estivessem atentos a tantas outras coisas que tenho publicado (sobretudo em revistas técnicas e no blog), poderiam perceber que muito tenho lutado para se criar um novo conceito de treino, mais centrado na qualidade pessoal do instrutor ao serviço da saúde do corpo, segundo as leis da sua dinâmica postural. A resposta está, portanto, na realização de “actividades de baixo impacto”, com especial preocupação com o alongamento segundo as leis de Mézières (ora, é claro que isto pressupõe que os instrutores deixem de ser verdadeiros ignorantes em matérias de “Postura” e de treino de “alongamento”, passando a obter, sabe-se lá como, mais formação do que aquela que têm recebido; pois, para o caso de ainda não terem entendido, “postura” é muito mais do que “endireitar” determinada pessoa).
Resta desejar a todos os meus críticos as maiores felicidades na respectiva vida pessoal. No respeitante à vida “profissional”, não parecem ser suficientemente felizes. A grande taxa de respostas e de reacções perante o meu artigo só demonstra que “algo não está bem”. Bem, tanto que fica por dizer!... Mas, em breve, irão ouvir falar mais do meu movimento “anti-fitness”.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Clarificação

Relativamente ao artigo que hoje foi publicado no Jornal Público e que se encontra em baixo no blog ("Indústria do fitness: a falácia da nova medicina"), é importante tornar algumas coisas mais claras. Eu não sou necessariamente contra o conjunto das práticas do fitness. Eu sou é contra a forma como essas práticas são realizadas correntemente nos ginásios. Ainda ontem tratei um doente, com problemas de ordem postural, que tinha sido encaminhado por um médico para um personal trainer de musculação no Holmes Place. Ora, malvados sejam estes médicos ignorantes que desconhecem por completo aquilo que se faz nos ginásios (para além do facto de não entenderem que o paradigma musculação está quase sempre errado na questão do tratamento de deformidades)!
Em termos práticos, gostaria de ver a indústria do fitness ser preenchida por profissionais de nível qualificado. Os fisioterapeutas são, regra geral, profissionais bem formados, bem capazes de ser excelentes instrutores de fitness (neste caso fitness seguro), assim como brilhantes personal trainers (neste caso, poderiam dar uma componente “clínica” ao treino); seria óptimo para muitos fisioterapeutas que não têm grandes oportunidades de trabalho, tal como seria ideal para os próprios atletas. Portanto, apesar de não corresponder bem ao nosso desejo de trabalho, a intervenção no fitness e na indústria do bem estar (não deixando sempre de ser uma verdadeira indústria) constitui uma oportunidade de trabalho para os fisioterapeutas.

terça-feira, agosto 21, 2007

Só existe a cadeia posterior!

Para todas aquelas pessoas que continuam a duvidar que tudo no nosso corpo (e postura) depende fundamentalmente da nossa cadeia posterior, não deixem de se lembrar da “lição da cobra”. É um ser extremamente flexível, capaz de grandes deformações corpóreas. Consegue elevar-se e, quando se prepara para o ataque, coloca uma verdadeira postura cifo-lordótica. A lordose sustenta-a e a cifose (“abertura de asas”) surge como uma compensação. Como resultado, a serpente horizontaliza o seu olhar. Ora, atenção ao seguinte facto: a serpente não possui musculatura anterior, somente posterior. A serpente só tem cadeia posterior e, não fosse a sua grande flexibilidade, ela teria a tal postura cifo-lordótica “estruturada”. Ora, é um dado interessante para quem duvida que uma cifose pode ter origem num encurtamento da cadeia posterior. Aprendamos, portanto, com a natureza e sua parcimónia. Para mais, nós já fomos, outrora, seres reptilianos; o desenvolvimento da "cadeia anterior" constitui algo muito recente, falando em termos filogenéticos (ela adveio do nosso bipedismo). Já a cadeia posterior corresponde a algo dominante na natureza (não fosse essa a condição necessária ao "levantamento estatutário")...

quinta-feira, agosto 16, 2007

A toca do tigre

É o nome do quarto livro de Thérèse Bertherat, o qual acabo agora de ler. É o meu preferido, a seguir ao primeiro “Le corps a ses raisons”. É o mais pragmático de todos, incluindo diversos dados sobre o “tigre” que a todos nos controla (o “tigre” corresponde, obviamente, à dominante “cadeia muscular posterior”). Fala abertamente dos perigos da prática física tal como ela é realizada nos ginásios, insistindo num ponto preciso: todos os esforços, mesmo os da musculatura anterior, contribuem para fortalecer o nosso “tigre”; aliás, Bertherat aponta constantemente para a ambiguidade existente na palavra “forma”, sendo que a mesma palavra possui sentidos dissemelhantes para o terapeuta (mézièrista) e para o desportista. Bertherat descreve relativamente bem, apesar de forma bastante simplista, a constituição do “tigre”, diferenciando-o de outros músculos (ou cadeias) menos poderosos. Refere também os “cúmplices” do tigre, nomeadamente os rotadores internos dos membros e o diafragma. Apresenta, igualmente, imagens de alongamentos, compensações, testes e métodos de estiramento correcto.
Este livro de Bertherat, o mais ilustrado de todos, constitui uma referência obrigatória de todos os terapeutas que se interessam pela “postura”. Aliás, constitui ou devia constituir uma referência obrigatória para todos os que estão, de alguma maneira, envolvidos no tratamento ou treino do corpo. Ela é bem explícita a explicar por que é que os diferentes desportos contribuem mais para a “deformação do corpo” do que para a sua saúde... Ela está bem determinada em mostrar a realidade real das coisas, tão pouco conhecidas desse mundo incrédulo e impiedoso que é o do “fitness”.
Livros como este, esquecidos no tempo e num qualquer lugar soturno, compõem a “verdade” das coisas, tal como já ninguém reconhece. São livros revolucionários, escritos por pessoas corajosas, mas infelizmente são desprezados em prol de uma forma de ver a actividade física claramente “militar” (dominante no mundo contemporâneo). Quem reconhecerá que a “verdade dos factos” não está nesse mundo do “fitness”, onde os fisioterapeutas têm papel quase ausente, mas sim nos imbricados caminhos da “Reeducação Postural”?...

segunda-feira, agosto 06, 2007

Para reflectir

Remunerações

Fisioterapeuta (pelo menos bacharel): ganha no máximo 10 euros/hora numa clínica privada (poucos ganham mais)
Instrutor de musculação + cardio (não precisa de ser licenciado): ganha pelo menos 15 euros/hora no Holmes Place (nível 1)
Instrutor de Pilates/Fitness (tb não precisa de ser licenciado): de 15 euros a 25 euros/aula, sem ter em conta "cursos" privados

Não há dúvidas, tenho de me render ao mundo do fitness: trabalhamos menos, temos menos responsabilidades, divertimo-nos mais e não temos de aturar as "mordomias" de certos profissionais...

domingo, agosto 05, 2007

"Ab King" e outras idiotices do “fitness”

Tenho já manifestado muitas vezes o meu desconsolo relativamente aos exercícios e actividades realizados no conceito do “fitness”, mas nunca me dei ao trabalho de criticar por escrito aquela que é uma das piores invenções, nomeadamente em termos de máquinas de abdominais.
Muitas vezes, tenho realçado a importância da criação de um órgão de regulação ética da publicidade; o que, infelizmente, permanece sem existir... isto num país cujo Governo está cada vez mais interessado em aumentar as hostes de controle da Comunicação Social. Mas adiante... Uma das mais comuns “brincadeiras” da publicidade, um “engano de alma” absoluto, corresponde aos anúncios das máquinas de abdominais. Que fique desde já esclarecido que, no ponto de vista dos modelos fisioterapêuticos de Reeducação Postural, os músculos abdominais devem ser fortalecidos, mas com recurso à respiração e não a exercícios abdominais! Mas mesmo que pudéssemos considerar saudável a realização de exercícios abdominais – e não esquecendo que o conceito de “abdominais” é extremamente abrangente (não será o Pilates um trabalho de abdominais? É, mas um trabalho abdominal profundo), e os exercícios a que se referem os anúncios incluem essencialmente o treino dos músculos rectos do abdómen (musculatura superficial) – posso dizer que não há qualquer necessidade de utilizar máquinas de abdominais para realizar um trabalho dessa musculatura. Há, sim, necessidade de se ser bem instruído no respeitante à realização desses exercícios... algo que raramente é feito!
Eventualmente, poderíamos conceber que algumas máquinas abdominais poderiam ser vantajosas, no sentido de certos objectivos como o apoio da cabeça durante a realização do trabalho do tronco... Mas, uma máquina em particular, o “Ab King”, máquina cujo anúncio tem passado na televisão com muita regularidade, constitui a coisa mais idiota inventada em termos de realização de abdominais. Isto porque a máquina em si e o movimento que ela proporciona não permite realizar a flexão do tronco, mas sim flexão das ancas, pois o movimento constitui um fechamento do ângulo compreendido entre as ancas e o tronco sem praticamente flexão alguma da coluna dorsal (portanto, não há "abdominal"). E, como se a dita máquina não fosse já por si extremamente mal pensada num ponto de vista biomecânico, ainda por cima a dita permite a realização de extensão da coluna para além do neutro. Ou seja, aquilo que os publicitários referem como uma vantagem da máquina, a possibilidade de trabalhar também os músculos extensores, não só contraria todos os princípios que defendemos em Reeducação Postural (fortalecer musculatura hipertónica para quê?...), como permite a realização de um “erro de sistema” que até os instrutores mais ignorantes podem reconhecer: a determinado momento, o desportista realiza hiperlordose da coluna lombar (vejam-se as imagens televisivas, com a coluna lombar lordosada e bem longe de estar apoiada), não só porque os membros inferiores estão muito descidos mas também porque existe puro e duro exagero da amplitude.
Ora, será que vale a pena estar a “destruir” o corpo em nome de uma barriga mais lisa (o que é por si um grande mito, pois perdemos barriga se perdermos gordura corporal, e perdemos gordura se realizarmos actividade aeróbia prolongada, não perdemos gordura numa área do corpo pelo facto de estarmos a trabalhar especificamente aquela área... ou seja, de uma vez por todas, as pessoas que aprendam que “fazer abdominais para reduzir a barriga” é puro mito, pura patetice)? E quem serão os “génios” que inventaram tal máquina? Será que os mesmos conhecem o termo “biomecânica”? E onde estão os profissionais de saúde e de Educação Física para explicar que a dita máquina é um engodo publicitário (mais um entre tantos!...)? Onde está a responsabilidade profissional? As pessoas devem ser protegidas de anúncios como estes, principalmente quando não as podemos proteger da sua própria ignorância...

quinta-feira, agosto 02, 2007

A indústria do fitness: a falácia da nova medicina

Em primeiro lugar, é preciso salientar que, aparte esse tão usado e reciclado estrangeirismo (“fitness”), também as palavras “nova” e “medicina” deveriam vir acompanhadas de aspas, porventura incontáveis aspas e reticências; isto porque não só a prática gímnica não constitui verdadeira “nova arte”, como o termo “medicina” se refere a uma actividade profissional de cambiantes constituintes extremamente complexas e multidimensionais. Mas este texto não pretende definir conceitos. Este é mais um texto de alerta, de um “alerta” que desfalece, que desprimora, que raramente ousa tocar os augúrios conteudísticos da comunicação social ou da opinião pública. E falo de um alerta relevante: falo do perigo da prática gímnica, tal como preconizada actualmente na nossa sociedade.
Desde tempos imemoriais que a prática física tem acompanhado o evoluir da sociedade, em inúmeros aspectos mais ou menos formais. Por exemplo, com o surgimento das cidades-estados na antiguidade do século VIII a.C., os jogos tornaram-se uma actividade comum e importante da vida em sociedade. Chamados para a guerra a qualquer momento, os cidadãos das cidades-estados guerreiras procuravam sobreviver através de uma boa preparação física e coragem. Por outro lado, os Gregos tinham uma unidade de língua e cultura que celebravam com festivais abrilhantados por competições de atletismo, sendo que o mais importante tinha lugar em Olímpia, principal templo de Zeus.
Durante milénios, a prática física perpetuou-se, estando sempre mais ou menos associada à prática de um ou mais desportos específicos, actividades físicas de certo modo sincopadas segundo um código determinado. Mais recentemente, a prática física tem sido vista sobretudo enquanto prática motora, sendo que o conceito de Educação física tem sido preterido a favor do conceito de “ciência da motricidade”, com origem em Merleau-Ponty e continuidade nacional em Manuel Sérgio. Nos seus livros sobre “epistemologia da motricidade humana”, Manuel Sérgio reforça o carácter holístico da pragmática desportiva, vista como prática multimodal e multi-existencial.
Independentemente de ter sido ou não bem sucedido o esforço de alguns de transformar a “prática desportiva” numa arte da condição humana, é inegável que a realização de desportos tem influenciado marcadamente a evolução da nossa sociedade.
Acontece que nunca e em tempo algum se realizou um esforço tão grande como o actual para estudar e divulgar os efeitos e benefícios do desporto sobre a saúde humana. É talvez por isso que certas especialidades médicas começam a proliferar – como a medicina desportiva – e certos cursos de “ciências da motricidade” começam a virar-se para a dimensão da saúde e do bem estar. É talvez agora relevante sublinhar que jamais um desporto foi concebido em termos das suas potencialidades para a saúde do Homem. Todos os desportos ditos “clássicos” possuem uma história própria que não passa, de forma alguma, pela estruturação de um conjunto de gestos com vista à saúde do sistema esquelético do Homem.
É, portanto, aqui que começa a problemática da tão aspirada síntese entre desporto e saúde. A saúde não pode ser conseguida somente pela prática suave de determinados desportos, pois, efectivamente, não há, em termos biomecânicos e cinesiológicos, um desporto que possa ser considerado como uma actividade perfeita (em termos fundamentais de saúde esquelética do Homem). Para além disso, também é frustre a pretensão de se querer que um instrutor de “fitness” constitua um profissional de saúde. O desporto possui inúmeros benefícios, mas esses mesmos benefícios só são conseguidos pela prática arraigada de componentes específicas e bem estudadas de treino desportivo. E ainda devemos considerar que a obtenção de saúde num plano do corpo (ex. cardiovascular) acarrete prejuízo de outro plano corpóreo (ex. músculo-esquelético)...
Muito mais grave que a prática mais ou menos formal de um desporto é a massificação do treino dito de “fitness”. Refiro-me à musculação e a todos os variados ingredientes de uma massa acrítica de actos embrutecidos (com nomes todos eles o mais estrangeiros possíveis). Com gravidade muitas vezes não valorizada, o utente dos ginásios é atendido e seguido por um instrutor muitas vezes sem formação superior, num ritual de treino profundamente desmesurado. Todos os dias observo, nos meus próprios treinos físicos, o erro e a palermice de tantos e tantos exercícios “prescritos” ao desportista. São os exercícios de “fortalecimento das costas” (forçando a obtenção de posturas anormais e claramente patológicas), os alongamentos feitos rapidamente e sem controlo do alinhamento, os movimentos não fisiológicos, os gestos forçados e repetitivos sem qualquer razão de ser, para não citar mais coisas... Pelo que tenho visto, e pela minha avaliação de fisioterapeuta, a grande maioria das actividades realizadas no contexto de ginásio são impróprias para a saúde humana.
Mas, ao mesmo tempo que ocorre a massificação da prática desportiva, com quase meio milhão de portugueses a praticar uma qualquer actividade e com milhares de ginásios abertos ao público, a medicina dita “clássica”, aquela que se preocupa com a fisiologia normal e não tanto com o corpo “condicionado”, perde uma já longa e polémica batalha. Os atestados médicos, indispensáveis desde 1999 para quem queria inscrever-se num ginásio, deixaram de ser obrigatórios, cabendo ao cliente responsabilizar-se pelo seu estado saudável, uma medida que, logicamente, os proprietários das academias desportivas aplaudem.
Ora, é preciso entender que ao retirar por completo a responsabilidade do médico à actividade desportiva do utente, estamos a promover o abandono da sua saúde e a sua perda nos meandros da máquina confrangedora do “fitness” e seus “profissionais”. Estamos, portanto, a entregar um potencial doente cardíaco às mãos de um instrutor não licenciado ou fracamente licenciado que subordina o cliente a correr numa passadeira sem controlo adequado de determinados parâmetros. Estamos a entregar uma doente com uma artrose dos membros inferiores aos famosos “saltinhos” daqueles estúpidos mini-trampolins de VivaFits e companhia. Estamos a entregar um indivíduo com perturbações posturais a um “personal trainer” ou outro instrutor que pensa que reeducação postural consiste em endireitar à força o seu cliente (como tantas vezes tenho visto em aulas de Yoga ou de Pilates). E assim por diante...
Temos, portanto, o mundo do “fitness” ao serviço incrédulo da saúde dos portugueses. E ao que parece os portugueses gostam destas actividades, pois não pára de crescer o número de clientes das academias desportivas. O que muitas destas “vítimas” não sabem é que a indústria do “fitness” é extremamente agressiva. E não possui a mínima vergonha da forma como trata os seus clientes. A meu ver, é impossível separar o mundo do desporto do mundo da saúde. Para mim, que sou profissional de saúde e motricidade, não consigo ver as coisas sem a perspectiva da motricidade e da postura ao serviço da saúde humana. Não corro pelo condicionamento, como ninguém deveria correr ou fazer correr. Corro pela saúde das pessoas e pelo respeito às suas capacidades.
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Publicado no Jornal Público, dia 23 de Agosto de 2007