sábado, dezembro 29, 2007

A cultura de blogue nacional: resposta a José Pacheco Pereira

No Público de 29 de Dezembro de 2007 pode ser visto na sua capa a referência a um artigo de opinião de Pacheco Pereira sobre os blogues e aquilo de que os mesmos são “mostruário”. Aparte todas as possíveis considerações críticas desta nova tendência deste jornal para publicitar nas suas capas artigos de opinião que não possuem importância relevante (ainda no dia anterior, também na sua capa, jazia uma referência a um artigo de opinião de Pinto da Costa, o qual se revelou como insalubre e extremamente pobre...), não podemos deixar de responder concretamente aos conteúdos do artigo deste “nosso” Pacheco Pereira.
Pacheco Pereira tem, em geral, uma opinião negativa dos blogues, revelando que os mesmos tornam os seus autores pessoas iludidas porque quem escreve “acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes.” Pacheco Pereira defende que vivemos numa “cultura de blogue”, a qual possui os defeitos referidos e citados pela voz de Eça de “juízos ligeiros, vaidade e intolerância”. Refere também que os blogues relevam de um “envolvimento narcísico”, relacionado com a vontade que todos têm de dar o seu “toque de Midas” ao constructo ideológico e cultural do nosso país. Por fim, Pacheco Pereira diz: “como também tenho um blogue, deixo aos leitores o julgamento do que se me aplica do que aqui digo”.
Ora, chegamos, portanto, ao ponto culminar da “discussão”. As críticas de Pacheco Pereira são, todas elas, aplicáveis à sua própria pessoa, pelo que não entendo muito bem as razões pelas quais Pacheco Pereira escreve o texto que ora escreveu.
Importante será dizer que o “fenómeno blogue” representa muito mais do que uma fenomenologia cultural específica. Os blogues nascem sempre da necessidade, realmente narcísica, de escrever e tornar público aquilo que é pensado. A realidade é que muitos jovens portugueses possuem uma necessidade inefável de “tornar público” o seu pensamento, achando sempre que o seu “pensar” é único, precursor e originalíssimo. Como não há, neste nosso país elitista, espaço suficiente para a “normal” divulgação dos nossos pensamentos, como não há abertura suficiente à publicabilidade de homens desconhecidos, então os tais jovens portugueses, muitos deles extremamente inteligentes e socialmente conscientes, resolvem criar uma fonte de “expansionismo” idiomático, ou seja, resolvem criar uma fonte de receitas do pensamento.
Tenho defendido muitas vezes que o nosso país tem muito mais pensadores do que aqueles que são realmente “publicáveis”. Os intelectuais do nosso país andam por aí, abundam muito mais do que podemos imaginar. E todos eles querem ter uma oportunidade de publicar, de tornar famoso o seu “pensar”; um pouco à semelhança de tantas centenas de jovens que sonham ser cantores, actores e/ou modelos, com vista ao exercício narcísico de um “projecto de fama”. O blogue surge como resposta à necessidade de publicar e à incapacidade ou insuficiência dos órgãos de Imprensa para dar voz a esses mesmos pensadores. O blogue é muito mais do que a expressão de uma “indústria cultural”. É a expressão de uma necessidade perfeitamente legítima, bem patente nas mentes de tantos proto-pensadores. Se Pacheco Pereira fosse desconhecido, ou seja, se fosse um homem “não publicável”, talvez compreendesse melhor o verdadeiro “objecto” dos blogues. Mas é precisamente porque os homens como Pacheco Pereira, Miguel Sousa Tavares e Vasco Pulido Valente possuem tanto “terreno” em colunas de jornais e revistas, tornando escassa a possibilidade de outros serem publicados, que tanta gente possui a necessidade, emergente, de criar e gerir blogues. Há realmente “vaidade” nos blogues, como sugere Pacheco Pereira, mas, ao contrário do que o mesmo refere, também há muito “material de peso” nesses mesmos blogues abundantes; material esse que todos os dias tenta a sua “ascensão” mas que não consegue verdadeiramente “ascender” ao púlpito.
Também eu criei um blogue. E fi-lo com vista à publicação de materiais não publicáveis em revistas técnicas (porque de natureza menos científica daquela que é necessária à publicação tecnicista). E também eu quero ser publicado. Por exemplo, tenho determinadas expectativas relativas a este mesmo texto... O que há a ter em atenção no “fenómeno bloguista” é à questão dos espaços merecíveis de publicação de tantos “pensadores” não reconhecidos. Somente quando diminuir a pressão do lóbi e do interesse mediático é que irá ser criada a possibilidade de tantos homens poderem, merecidamente, criar Obra na Imprensa. Talvez aí diminua o “peso” dos blogues...

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Do fitness e outros demónios: O corpo desfigurado e a máquina industrial

Quando há uns anos atrás treinava acerrimamente a bendita musculação no imaculado Lisboa Ginásio Clube, estava longe de presumir que, uns anos depois, viria a constituir as primeiras enxadadas de um movimento, fundamentalmente conceptual, com o objectivo de relevar o mundo do fitness enquanto indústria do corpo e maleita social.
É bem sabido que o mundo dos ginásios está em premente evolução, crescimento económico exponencial inquestionável... O que é menos bem sabido, sub-repticiamente conhecido, é que labora, por trás desse negócio do fitness, uma poderosa barganha desconstrutiva, um insaturável poder kitsch de atracção maquiavélica das mentes mais débeis, uma arma de destruição do corpo na sua vertente estrutural mais sensível e profunda.
Tentemos explicar aquilo que ainda não foi compreendido... É indubitável que, em termos funcionais, a prática desportiva apresenta vantagens para a saúde humana. Estas vantagens estão bem condimentadas, demonstradas e justificadas por estudos, fundamentalmente anglo-saxónicos, bem estruturados e mais ou menos qualificados em termos metodológicos. Como é óbvio, esses mesmos estudos tratam de questões puramente funcionantes, de variáveis de funções corpóreas como a frequência cardíaca ou a tensão arterial, assim como o feedback relativo ao estado de dor/sofrimento e/ou de bem-estar. Referimo-nos a factores facilmente mensuráveis, a dados facilmente modificáveis pelas condições de treino e as constantes de condicionamento físico. Assim, só pode ser perfeitamente óbvio que um treino de força muscular resulte no aumento da força, assim como um treino cardiovascular resulte no aumento da resistência cardíaca, tendo sempre em conta que essa mesma força e essa mesma resistência são facilmente mensuráveis, mediante a utilização de instrumentos adequados.
Porém, e é aqui que a ‘história’ verdadeiramente começa, é muito limitativo se falarmos só das variáveis funcionais pelas quais se rege o nosso corpo. Para além da “forma física” enquanto sinónimo de força masculina e elegância dionisíaca, existe uma outra “forma”, aquela que foi assumida pelas mais requintadas expressões artísticas do Renascimento, a “forma” enquanto “estrutura”, enquanto “morfologia”, enquanto “postura”. Fiquemos, portanto, ancorados nesta última palavra: postura. Definida de muitas e variadas maneiras, todos os profissionais de saúde (os verdadeiros profissionais) sabem que o termo postura se refere a uma forma de enquadramento estrutural corporal que varia muito consoante o corpo e a Pessoa que o compõe. A postura, ou seja, o alinhamento corporal, o arrumo posicional, o arranjo estrutural, a morfologia, é diferente de pessoa para pessoa e não há quem possua uma que possa ser considerada perfeita.
Na realidade, a postura, muito mais do que um determinado posicionamento corporal, e decerto muito mais do que uma mera posição da coluna vertebral, depende do estado de mais ou menos tensão e mais ou menos flexibilidade do conjunto das cadeias de músculos e fáscias (cadeias musculares) que desenham e configuram o nosso corpo. Estas mesmas “cadeias musculares” não são enquadráveis nos livros de anatomia e nos manuais convencionais. Aliás, quando a Madame Mézières, uma fisioterapeuta francesa que fundou um método de trabalho postural em 1947, fundou o conceito de “cadeia muscular”, como base explicativa de um conjunto de músculos presentes na parte de trás do corpo sempre fortes e curtos demais, estava já consciente de que o seu modelo, a sua visão, seria profundamente revolucionário. Talvez por isso a sua grande obra tenha recebido o nome, eventualmente pomposo, de “Révolution en Gymnastique Orthopédique”.
O método Mézières, mãe dos métodos de Reeducação Postural, um método que viria a abalar os conceitos da antiga “ginástica sueca” de Per Henrik Ling (1766-1839), viria estabelecer que a postura, e a deformidade postural, deriva do estado de tensão da musculatura posterior. Segundo Mézières, são os excessos musculares que provocam as deformidades posturais, e somente um trabalho holístico de alongamento global das cadeias musculares encurtadas pode trazer “ordem estrutural” a um corpo corrompido pelas hegemonias músculo-tendinosas.
O método Mézières é, portanto, o grande método de Reeducação Postural. Mas não é o único, pois uma série de outros métodos viriam a ser encabeçados por discípulos de Mézières (Bertherat, Godelieve Denys-Struyf, Peyrot, Souchard, Busquet, Nisand, entre outros). E para além disso, paralelamente estaria a ser desenvolvida a “integração estrutural” ou rolfing de Ida Rolf, método anglo-saxónico que viria igualmente a dar origem a uma série de outros métodos-filhos.
Todos estes métodos de Reeducação Postural baseiam-se em princípios de alongamento, relaxamento e libertação mio-fascial. Todos eles se baseiam numa visão individuada do sujeito, sendo que a saúde do corpo músculo-esquelético está dependente do alongamento global de conjuntos musculares diferentemente retraídos em diferentes indivíduos. Para os citados métodos, quase todo o esforço físico significa deformação. Por exemplo, os proponentes de Mézières defendem que o mais leve trabalho com pesos irá aumentar a tensão da cadeia muscular posterior, funcionando tal como uma porta de entrada para a deformidade. Estes argumentos são já uma realidade científica, desde que os estudos electromiográficos demonstraram que é real que a musculatura posterior e da coluna está em tensão permanente. Sendo assim, o paradigma da “fraqueza muscular” como causa para a dor da coluna (ou outras a nível esquelético), secularmente defendido, aparece fortemente abalado. Também abaladas ficam, a meu ver, todas as visões de “saúde” existentes no trabalho de fortalecimento muscular. Ora, é precisamente aqui que surge a grande “questão”... Se o reforço muscular desrespeita as leis da “postura corporal”, então em que pé ficam todas aquelas actividades desportivas praticadas nos ginásios e clubes desportivos, actividades essas quase totalmente baseadas num modelo de fortalecimento e esforço físico condicionante?...
Pena, e isso preocupa-me bastante, é que os diversos profissionais da Educação Física e do desporto, nem sequer conheçam os paradigmas da Reeducação Postural; como tal, a questão colocada atrás não lhes ocorre. Aliás, a grande maioria dos profissionais do desporto permanece ainda no mundo simples de quem pensa que “postura” significa manter as “costas direitas” (os mesmos profissionais que cada vez mais se querem assumir como profissionais de saúde).
Ora, os argumentos apresentados justificam a necessidade de uma revisão dos conceitos da “ginástica sueca”, aliás de todos os conceitos que premeiam a actividade física realizada neste mundo moderno. Se, de certa maneira, certas actividades como o Yoga, o Tai-chi e o Pilates, já poderão constituir um “outro olhar” da questão, não posso deixar de dizer que ainda estamos muito longe de ter uma prática desportiva movida pelas leis Mézières (ou seja, uma prática mais leve, baseada nos princípios do alongamento global e do relaxamento psicossomático, uma prática mais próxima de certos conteúdos holísticos e humanistas...). A meu ver, é mesmo necessária uma verdadeira revolução da prática desportiva, pois uma nova práxis, mais holística e alicerçada na pessoalidade intrínseca a cada sujeito, surge como emergente necessidade.
Mas não é isso o que se passa. A revolução da prática desportiva está a ocorrer precisamente num sentido oposto. A pessoalidade está cada vez mais em jogo e as novas actividades do fitness aparecem desenhadas para reforçar, fortalecer... deformar...
Para além do mais, o fitness aparece, cada vez mais, como um conceito, um produto, e não uma salvaguarda da saúde humana. O fitness reveste-se, crescentemente, de uma linguagem cada vez mais associada ao marketing, sendo que vai vestindo a capa de uma verdadeira indústria. Recentemente, tenho defendido que o fitness consubstancia um exemplo do conceito de “indústria cultural” defendido por Theodor Adorno. E, a julgar pela magnitude do fenómeno, não podemos deixar de ver o mundo do fitness como mais uma expressão da “sociedade de mercado” ou da “cultura de massas”.
No seio desta cultura massificada, em que a obsessão pela “forma física” vai permeando as necessidades íntimas de um cada vez maior número de pessoas, o lugar para o trabalho corporal com vista à saúde está cada vez menos presente na sociedade. Parece só haver lugar para os “termos” mais esteticizantes, que são precisamente aqueles que mais tornam tudo tão maquinal e simplista.
O contexto atrás explicado aparece bem definido pelo conjunto crescente, e bem prolixo, de pessoas que apresentam um corpo maculado pela prática desportiva exagerada, que mais não é do que um corpo cheio de lesões e dores, assim como de desequilíbrios musculares e assimetrias esqueléticas. Muitas pessoas procuram os meus serviços com vista a resolverem problemas que a indústria do fitness gravou nos seus corpos, sem dó nem piedade. E se estas pessoas não estiverem prontas para entrar num trabalho que é claramente morfoanalítico, e como tal lento e pouco dado à atracção própria do marketing, irão facilmente abandonar as sessões de terapia que tenho para lhes dar (preferindo mergulhar no mundo da fisioterapia clássica, concebida para tratar sintomas e não as causas dos problemas, ou então, preferindo mergulhar no mundo mais atractivo das medicinas não convencionais, sendo que estas perpetuam a questão da imagética cultural massificada).
Claro que aquilo que está mal no fitness não é só o facto de o mesmo se basear num conceito de anti-saúde postural. O que está mal no fitness não é só também o facto de perpetuar um pouco essa forma massificada e pop de se viver na sociedade moderna. Outras questões mais específicas advertem para a minha preocupação. O mau profissionalismo, o facto de os diversos instrutores beberem todos da mesma cartilha e eternizarem e propagarem a mesma forma errática de treinar, alongar, mexer... A débil formação dos mesmos instrutores, com muitos deles a não possuírem formação superior, o desrespeito das actividades físicas mais variadas pela normal biomecânica do corpo, a realização de exercícios com intrepidez e risco indubitável para a saúde das estruturas, as denominadas Lesões por Esforço Repetido, e todo um conjunto interminável de razões...
E não podemos esquecer a máquina financeira que alicerça esse mesmo mundo. Por exemplo, os instrutores e empregados do Holmes Place parecem ser tirados do submundo do ‘Metrópolis’ de Fritz Lang ou dos “clones” do ‘Admirável Mundo Novo’ de Huxley: falam todos da mesma maneira, parecem todos funcionar de forma artificial e anti-humana, perdem-se em estratégias de imagem e de mercado (até mesmo no momento de dar as aulas) e gastam um tempo ilimitado em tácticas auto-promocionais.
Ora, não é este o mundo que eu quero para mim! Quero um mundo onde a complexidade, a unicidade e o respeito pelo “corpo frágil” de cada um sejam tidos em conta com uma certa normalidade. Quero um mundo onde figure uma certa atitude reflexiva, assim como uma constante batalha contra o simplismo e a ilusão social.
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Publicado no Jornal 'Semanário', dia 25 de Julho de 2008

sábado, dezembro 01, 2007

Antiginástica: o método de Thérèse Bertherat enquanto conceito do anti-fitness

O termo “antiginástica” roça os limites da curiosidade. Afinal de contas, é bem sabido que o exercício físico é aconselhado por tudo e por todos como uma espécie de panaceia para os problemas que afectam a saúde esquelética do ser humano. E parece não haver dúvidas que o exercício, o treino, a “ginástica”, possuem todos as suas virtudes no esboçar de um corpo condicionado, assaz treinado para reerguer uma “torre de Babel”; sim, o corpo condicionado igualiza o conceito de perfeição, de beleza intransigente, de vivência mais que telúrica do agir concreto... E é este mesmo corpo “perfeito” que, enquanto objecto de consumo que é, é treinado e potencializado até uma máxima de “capacidade” e de auto-servilismo, num paradigma de “forma” completamente contrário ao modelo de trabalho de Bertherat, a grande criadora do conceito e método da “antiginástica”.
Nas últimas décadas, o fitness tem acentuado cabalmente a sua influência na sociedade e no mercado global de consumo. Pode-se, inclusivamente, dizer que, graças às práticas do fitness, o corpo se transformou num perfeito objecto de mercado, uma nova indústria cultural (T. Adorno). Gostaria de, neste momento, citar Jean Baudrillard (“A sociedade de consumo”), que diz, a propósito do corpo como “o mais belo objecto de consumo”, que “a redescoberta [do corpo], após uma era milenária de puritanismo, sob o signo da libertação física e sexual, a sua omnipresença na publicidade, a moda e na cultura das massas – o culto higiénico, dietético e terapêutico com que se rodeia a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objecto de salvação.”
Assim sendo, a indústria do “bem estar”, que granja tantas vezes os limites do “cientificamente aceitável”, e a indústria do fitness – juntas e separadamente – têm vendido uma ideia de corpo enquanto objecto de autonomia libertária relativamente ao monocordismo do mundo contemporâneo, assim como têm produzido um conceito de “corpo condicionado” enquanto condição obrigatória à total imunização à patologia. Que pena que estejam constantemente a converter o corpo num objecto de “culto”, quando seria mais previdente tentar ler as suas verdadeiras necessidades... Embora se baseiem em rigorosas leis da “fisiologia do esforço”, e apesar de tantos estudos avultarem os benefícios cardiovasculares do exercício, não há ainda evidência suficiente que permita ver o fitness como resposta às necessidades do corpo esquelético. Significa isto que a quase totalidade de desportos existentes, assim como as mais propaladas actividades de fitness, não se encontram adequados às exigências de um “corpo frágil”, que é aquele que genuinamente vestimos; o fitness alimenta a ideia de saúde, mas os esforços que desencadeia ao nível do corpo desautorizam as mais basilares leis do funcionamento postural global.
Tentemos explicitar... O método Mézières, o qual revolucionou o campo da medicina e ginástica ortopédica em França a partir dos anos 40, veio criar a noção, actualmente cientificamente comprovada, de que as deformidades posturais se devem a excessos musculares e não a fraquezas musculares, ou seja, as alterações posturais ou estruturais do corpo têm origem no excesso de força de determinados músculos, os quais têm tendência para desenhar uma cadeia na zona posterior do corpo (cadeia muscular posterior). Ora, vários estudos dos anos 90 do século passado demonstraram que a assunção de autores como Mézières e discípulos (Bertherat, Souchard, Busquet, Peyrot, Nisand), segundo a qual todos os esforços musculares contribuem para a deformidade, está absoluta e inegavelmente correcta; significa isto que a saúde estrutural do nosso sistema músculo-esquelético depende sobretudo de actividades que favoreçam o alongamento e o relaxamento, e não de actividades que favoreçam a força e a resistência muscular.
Os dados apresentados, e subsistidos por diversos estudos bem recentes, levam a concluir que a realização da maioria dos desportos ou actividades de fitness existentes poderá acarretar a tendência inequívoca para a deformidade postural. Isto, só por si, já justifica uma certa atitude relativamente a tantos e tantos desportos efectuados (conceito de anti-fitness), os quais, quase todos, valorizam a realização de esforços intrépidos. Em particular, não pode deixar de se condenar o médico que encaminha o utente que sofre de dores lombares para um personal trainer de musculação, ou o professor de Yoga que força a extensão da coluna de um utente com escoliose, desconhecendo que tal postura é absolutamente contra-indicada à condição existente. E estes são apenas dois exemplos bem paradigmáticos. E exemplos não faltam!... Será necessário citar o impacto muscular acrescido de tantas actividades físicas, associado àqueles esforços que estão ligados às “lesões por esforço repetido”?... Por exemplo, quem se atreve a considerar a ginástica acrobática ou os trampolins como um desporto saudável, mesmo para quem não sofre da coluna (mas passará, decerto, a sofrer...)? Quem se atreve a negligenciar os recentes estudos que associam a presença de deformidades à realização de desportos como o voleibol, o basquetebol e outros de carácter assimétrico? E quem se atreve a negar que o desporto de alta competição constitui um artefacto só eventualmente explicável por um excelente profissional de saúde mental?...
Deve, portanto, ser dito que, mesmo os melhores instrutores de fitness, mesmo aqueles que concebem o melhor modelo de saúde e segurança para o utente, todos eles se movem por teorias da prática física que remontam a anos muito anteriores aos da revolução mézièrista anteriormente mencionada. Daí que a actividade de fitness passe por ser condenável per si, mesmo que tenhamos em conta instrutores de alta qualidade.
Ora, é este o conceito de anti-fitness que, de forma primacial, norteia o método da antiginástica de Thérèse Bertherat. Este é, de facto, um método grupal que privilegia a realização de alongamentos globais, o relaxamento muscular, o alinhamento postural constante, a libertação fascial, a (re)construção postural. À semelhança do mais serôdio método “Corpo e Consciência” de Courchinoux, a antiginástica valoriza a consciencialização corporal, com base nos princípios do método Mézières. É, no fundo, a forma como o método e as posturas de Mézières podem ser adaptadas a uma prática grupal, adequadamente respeitadora dos princípios mézièristas, ou seja, é a forma como um novo método de ginástica/fitness (ou será antiginástica/anti-fitness?) pode surgir a partir das leis de trabalho de Mézières, as quais configuram a “grande teoria das Cadeias musculares”.
A obra inicial de Bertherat “Le corps a ses raisons” explana muitos dos princípios enunciados, sendo a única das obras da autora traduzida para português nacional (a obra pode ser encontrada em alfarrabistas com o horrível título “Dê saúde ao seu corpo. A saúde pela antiginástica”). A segunda obra de Bertherat (“Courrier du corps”) refere-se a outros métodos mais ou menos assimiláveis pelos princípios de Mézières. A terceira obra (“Les raisons du corps – garder et regarder la forme”) é a mais lírica de todas as que a autora escreveu. E a obra “Le repaire du tigre” é a que mais se aproxima dos conteúdos do texto presente. Nela, a autora aponta os tantos erros, as tamanhas deformidades que as práticas físicas contemporâneas alimentam, alertando para o facto de todo o esforço alimentar os “vícios do tigre que temos por trás do corpo”.
Aliás, o conceito de “forma” para Bertherat é muito diferente do conceito de “forma física” para o fitness. Para Bertherat e os proponentes da Reeducação Postural, “forma” não significa músculos potentes e elegância feminina; “forma” significa “postura” e “postura” significa um corpo respeitado nas suas forças e inibido das suas tensões... um corpo com história, um corpo com “forma”...