domingo, dezembro 21, 2008

Várias medicinas, várias terapias: onde está a verdade?

É com forte ambivalência, e um conjunto incomensurável de dúvidas, que escrevo este texto, o qual poderá ter consequências algo imensuráveis para muitos e, em especial, para a minha própria vida. Mas, não sendo despicienda a natureza algo arrojada (e também polémica) da conteudística do que tenho a dizer, sinto que alguém tem de repor a verdade onde ela parece estar a faltar. Ora, o que proponho falar é sobretudo da natureza algo controversa do mundo da medicina, aliás “medicinas”, e, em específico, do mundo das terapias, tanto das físicas (que me respeitam especialmente, visto que sou fisioterapeuta) como das psicológicas (que me respeitam enquanto doente). Tentarei compor um conjunto de argumentos cuja pertinência não será superior à sua total veracidade!
Começarei por dar um exemplo relativo às diversas “fisioterapias”. Um doente queixa-se de uma dor na região posterior da coxa, a qual se estende ao resto do membro inferior. Esta dor é acompanhada de formigueiros e de diminuição da sensibilidade táctil na barriga da perna. Este mesmo doente, numa altura em que a dor se torna insuportável e o impede de dormir, resolve visitar um médico. Este mesmo médico – que tanto pode ser clínico geral, como ortopedista, reumatologista ou fisiatra (o que vai com certeza influenciar o diagnóstico) – diagnostica (o mais provável) uma dor ciática. Esta, sabidamente, é provocada por uma compressão de um raiz nervosa na região da coluna ou mais à periferia. A problemática da multidimensionalidade clínica a que me pretendo referir poderia começar já aqui, visto que uma ciática pode ter uma grande multiplicidade de origens. Mas vamos admitir que um exame como a Tomografia Axial Computadorizada, assim como determinados testes de exame “objectivo” (os quais serão realizados por pura sorte pelo profissional médico), comprova a existência irrefutável (se é que “tal” existe...) de uma hérnia discal. E vamos imaginar que esse mesmo médico decide acerca da pertinência da realização de um tratamento fisioterapêutico (para não falar da maior ou menor pertinência de diversos tipos de tratamento “médico” propriamente dito). É aqui que pretendo chegar. Se o doente for tratado por um técnico auxiliar de fisioterapia será, provavelmente, sob ordens de um médico fisiatra, submetido a “calores húmidos”, umas massagens e algum método de electroterapia. Mas, na hipótese de ser tratado por um fisioterapeuta, o seu tratamento pode variar tanto quanto a “orientação” paradigmática e metodológica desse mesmo terapeuta. Por exemplo, um fisioterapeuta proponente das “terapias manuais” poderá achar que determinadas manipulações e mobilizações vertebrais serão eficazes para o trabalho nas vértebras e discos intervertebrais afectados. Este terapeuta escolherá sobretudo exercícios de “extensão” da coluna. Mas um outro terapeuta, proponente da Reeducação Postural, supostamente um método mais holístico e analítico, irá valorizar mais os aspectos causais (musculares) da hérnia, realizando alongamentos com a coluna em “flexão” (ou seja, o movimento oposto ao do anterior). Ora, só aqui temos duas orientações completamente diferentes de trabalho terapêutico. E tudo estaria “bem” se presumíssemos que ambas dão (bons) resultados similares. Mas, o que a minha experiência tem demonstrado é que, no caso específico de hérnias discais sintomáticas, o trabalho “manipulativo” é mais eficaz na diminuição da dor do que o trabalho “reeducativo” (e eu sou um terapeuta “reeducativo”...). A questão está em saber se, perante maus resultados, o terapeuta “reeducativo” é capaz de desistir do tratamento realizado e escolher outro paradigma. De qualquer maneira, se não o fizer, arrisca-se a perder o doente. Mas vamos deixar este “exemplo” latente para retomar um exemplo que me diz respeito enquanto doente.
Ora, é bem verdade que, por volta dos meus seis anos de idade, eu era uma criança extremamente curiosa mas também algo perfeccionista. Admirava os prédios todos direitinhos e fica angustiado perante certos “artefactos” citadinos menos simétricos ou perfeitos. Em casa, quando a minha mãe desfazia as camas para poder lavar os lençóis, eu ficava particularmente ansioso e queria que, à força toda, a cama voltasse a ser feita para poder ficar “perfeita” e bonita. Se tal não acontecia sentia algo estranho dentro de mim, o que, já naquela altura, sentia como estranho. Vários anos depois, por volta dos 10 anos de idade, na altura em que entrei no 2º ciclo de escolaridade (escola nova, vida diferente), as minhas preocupações com os estudos aumentaram bastante. Lembro-me que comecei a realizar longos monólogos de conversação alta e solitária, os quais chegavam a durar horas, rituais de organização do estudo por horas e semanas. Às tantas passava mais tempo a organizar o estudo do que propriamente a estudar. Ainda assim conseguia estudar e tirar boas notas. Na escola a minha vida “social” não era particularmente fácil. Desde o 5º ano que os colegas tinham por hábito chamar-me de “menina” e “maricas”, quando mal sabia o que era a homossexualidade, e muito menos sabia o que era o bullying. Os anos foram passando. Os gozos e as humilhações dos colegas mantiveram-se. Em particular, as aulas de Educação Física eram um martírio e a professora, meio bruta, não ajudava nada. Lembro-me que era sempre o último a ser escolhido para se jogar, e eu simplesmente odiava aquilo tudo. Lá em casa ninguém sequer imaginava o tipo de “agressões” que sofria. E como as minhas notas se mantinham elevadas os professores também não valorizavam quaisquer outros aspectos da minha vida. Os rituais de estudo “alto” mantiveram-se até ao presente (agora tenho 28 anos), e os rituais de organização do estudo variavam de intensidade segundo os meses e os anos. Ao longo dos anos fui-me intelectualizando cada vez mais. Amigos nem vê-los! Aliás, de modo a evitar os gozos, e perante a humilhação diária a que era sujeito, evitava-os e a minha “assertividade” era feita por meio da “superioridade intelectual”. Referindo-me de novo aos meus “pensamentos aprisionados”, posso dizer que tive de tudo um pouco: preparações de horas antes de iniciar o estudo, a escrita com uma régua por baixo de modo a que as letras saíssem todas direitinhas, monólogos interiores de carácter existencial, tristezas de teor filosófico, etc. A nível sexual, mesmo que tal possa ser duvidado por muitas pessoas, apesar de me chamarem de “mariquinhas”, sentia-me atraído pelas meninas mais bonitas. Pelos rapazes sentia medo e somente isso! Quando saí do ensino básico para ingressar no ensino secundário, a minha auto-estima já estava claramente uma lástima. De tal forma que até era incapaz de urinar numa casa de banho pública, por medo de ser gozado por levar muito tempo a urinar (obviamente, se levava muito tempo a fazê-lo era sobretudo porque tinha medo e muito stress). No ensino secundário, as coisas começaram muito parecidas com o que tinham sido até ali. Era um bom aluno, um leitor interessado e obsidiante, enquanto que na escola os rapazes me chamavam de “borboleta” e de “sensível”. Importa talvez agora dizer que, apesar de terem surgido algumas dúvidas, nunca questionei seriamente o meu “gosto” pelas “miúdas”, e não sentia qualquer tipo de atracção por rapazes. Por outro lado, anos e anos de gozo consecutivo levaram-me a encarar a “masculinidade” como um grande mal do mundo. As coisas mudaram um pouco de aspecto por volta dos meus 17 anos. Comecei a treinar musculação. E o mesmo tipo de dedicação que colocava nos estudos comecei a colocá-la no levantamento de pesos. Este desporto começou a moldar o meu corpo, mas também me levou a tomar consciência de defeitos no meu corpo (defeitos esses que, antes já me provocavam “complexos”, mas que nunca me tinham preocupado tanto quanto isso). Por volta do 12º ano, quando muitos dos meus colegas “namoradeiros” se iriam preocupando com a exigente matemática, eu estava de tal forma obcecado com “o meu peito com maminhas” que não descansei até realizar operações plásticas (as quais fiz mediante “cunha” em certo hospital central de Lisboa). Apesar de não ter ficado totalmente satisfeito com as cirurgias, o aspecto do meu corpo passou a agradar-me um pouco mais, principalmente porque a obsessão com a musculação levava a que treinasse sem dó nem piedade pelas minhas articulações. Nessa altura também gastava rios de dinheiro com suplementação: proteínas em pó, aminoácidos de diversos tipos, glutamina, bebidas energéticas, e o prosseguimento de uma dieta extremamente rígida. De certo modo, o meu corpo mais musculoso levou-me a ser mais “masculino” e a ser mais “aceite” pelos rapazes. Mas, a obsessão pelo corpo era de tal forma grande que não pensava em raparigas, também já não lia tanto o Eça de Queiroz que me tinha acompanhado na puberdade, e, na altura de escolher o curso, depois de um ou dois anos de “descaminhos”, acabei por ingressar em Fisioterapia. No curso de Fisioterapia, já com 19 anos, tornei-me um modelo de rapaz com problemas de “desequilíbrios musculares”, sendo constantemente “boneco” para demonstração em aulas (afinal aquele corpo musculoso não era um corpo “saudável”...). O primeiro ano de curso foi extremamente exigente mas sobrevivi enquanto bom aluno. E, por mais difícil que fosse de imaginar, acabei mesmo por abandonar a musculação. No 2º ano de curso comecei a namorar com uma colega, a qual viria a tornar-se uma das pessoas mais importantes da minha vida. Entretanto, as minhas Ideias voltaram a mudar. Comecei a engordar, voltei às leituras literárias obsidiantes, e ao estudo escrupuloso... sempre com algum stress à mistura. Quanto à minha namorada, estabeleci com ela uma relação de dedicação plena, “amor-ódio” por vezes... Foi por volta do terceiro ano de curso, aos 21 anos que comecei a ter mais “pensamentos aprisionados”, principalmente no meu corpo. E tinha a total consciência de que era eu mesmo que os provocava (psicologicamente). A minha angústia perante os meus sintomas aumentou imenso, e cheguei a ter níveis de ansiedade de tal forma grandes que a ideia de suicídio começou a implantar-se em mim. Por esta altura do campeonato já tinha tido no Alcoitão uma disciplina denominada de “Psicopatologia e Saúde mental”. A partir daí tornei-me um leitor incomensurável de livros de psicologia e psiquiatria, incluindo o DSM, o conhecido manual de diagnóstico das perturbações mentais. Por volta dos 22 anos, quando estava a entrar no quarto ano de curso, o meu nível de ansiedade e as minhas “preocupações corporais” eram constantes (para não falar das minhas constantes ruminações, pensamentos que se mantinham obstinadamente na minha cabeça e que tentava eliminar com outros pensamentos... com muito esforço). O meu sofrimento era enorme. E, curiosamente, tinha achado no DSM um nome de uma perturbação cujas manifestações eram incrivelmente parecidas com as minhas: a “Perturbação Obsessivo-Compulsiva” (POC). Comecei a ler, “obsessivamente”, tudo o que dizia respeito ao problema. E como me preocupava com o facto de se ler em certos livros que era uma “perturbação grave”. Houve um dia, em que na minha “centésima” leitura do DSM-IV descobri que as “obsessões” e “compulsões” da perturbação poderiam não ser visíveis. É que, até aí, passava muito tempo a convencer-me que não tinha a POC porque não tinha comportamentos ritualizados observáveis. Mas quando, através de uma leitura mais cuidadosa, descobri que as “compulsões” poderiam ser “actos mentais”, apercebi-me de repente que era “obsessivo-compulsivo” e que, aliás, sempre o tinha sido. Disparo num choro convulsivo. Tinha, agora, a certeza de que a minha vida era uma tragédia. Pela primeira vez na minha vida resolvo procurar ajuda especializada. Até aí nunca tinha falado das minhas “obsessões” com ninguém. Logo no primeiro dia em que visitei o psiquiatra fiquei consternado pelo facto de ele ter sugerido que a minha namorada não era a “rapariga certa”, e que tinha uma ligação edipiana muito forte com a mãe, coisa que tinha de ser resolvida. Posso dizer que, nos anos seguintes, sempre acompanhado pelo mesmo psiquiatra, fui-me apercebendo das minhas “fixações”, da minha “bissexualidade imanente”, da minha “angústia de separação”, e de muitas mais coisas. Em geral, a realidade é que não melhorei significativamente das minhas obsessões. Continuava excessivamente centrado no corpo. O ano de 2003 foi o de finalização da minha licenciatura. Nessa altura encontrava-me fortemente desiludido com a profissão, e com a situação profissional de um curso que, inicialmente era dado em quatro ou cinco escolas, e que por essa altura já era ministrado por cerca de 17 escolas. Sentia, também, que a profissão de fisioterapeuta não era suficientemente “intelectual” para mim. Entretanto, as minhas ruminações obsessivas aumentaram na altura em que comecei a trabalhar, e, mais tarde, comecei a sofrer de muitas dores nas costas, as quais não pareciam ter explicação médica lógica. O meu psiquiatra continuava centrado na minha “angústia de separação” e eu, mais tarde, por estes e outros motivos, desisti do trabalho e voltei a entrar na Universidade... para tirar Psicologia. O primeiro ano na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação foi bem recheado de ansiedades múltiplas, assim como de imensos tipos de obsessões. Importa, agora, dizer que, até ali, nem eu nem o meu médico tínhamos atribuído grande importância aos medicamentos, nomeadamente ao Seroxat 20, o qual tinha receitado algures no passado. Mas a partir de determinada altura, por volta de 2004, comecei e depender de meio comprimido do citado anti-depressivo para conseguir ter um pouco mais de qualidade de vida. Na altura em que passei para o 2º ano do curso de Psicologia, as minhas obsessões em forma de “pensamentos repetidos até à exaustão” apareceram com uma força imensurável. Acordava com pensamentos “repetidos”, que sentia como “intrusivos”, como se não fizessem parte de mim. Esses pensamentos obsessivos poderiam ser qualquer coisa como “tenho de estudar melhor esta matéria”, coisa que repetia mais algumas vezes, depois a dúvida de que o tinha dito assaltava-me de novo, e voltava a repetir a frase até ficar convencido da sua realidade, a dúvida voltava a aparecer mais uma vez, e a compulsão repetia-se. Isto durava o dia todo! Não tinha descanso, e só a ideia da morte me dava alguma tranquilidade. Nesta altura, resolvi, à revelia do médico, aumentar a dose de Seroxat, o que começou a dar resultado ao final de uma semana (e não imediatamente, pelo que penso que o “placebo” não tem qualquer fundamento neste contexto). O que é que o meu psiquiatra disse sobre as minhas ruminações? Disse que elas eram um equivalente depressivo, sendo que queria que eu falasse das minhas emoções. Bem... posso dizer que, ao longo de vários anos, tive de ser eu a decidir aumentar a dose de Seroxat, pois as minhas obsessões eram ainda muitas. Como, apesar de tudo, o meu médico me passava a medicação, ia mantendo-o. Mas já conhecia das minhas leituras e do ano que fiz do curso de Psicologia que havia um outro tipo de terapia propriamente adaptada à minha perturbação: a Terapia cognitivo-comportamental. Resolvi experimentá-la. Ora, segundo a psicóloga que me estava a acompanhar, tudo em mim era reflexo da perturbação obsessivo-compulsiva. Se lia muito era obsessão. Se escrevia e publicava era obsessão. Se era perfeccionista no trabalho era obsessão. Penso que não é preciso dizer que me senti algo “deprimido” com tudo isto. Quando falei ao meu psiquiatra da minha visita à terapeuta cognitivo-comportamental, ele ficou simplesmente furioso e disse qualquer coisa como “não me venha com essas ideias que eu sou bem seguro do meu modelo!”. Portanto, em termos de resumo, o complexo de “inferioridade” da terapeuta cognitivo-comportamental não passa, para o meu psicanalista, de um complexo de “castração”. As dificuldades relativas ao bullying que vivi não são importantes para o meu psicanalista, pois o meu problema está na forma como a minha mãe estabeleceu uma relação de “domínio objectal” para comigo. Para a terapeuta cognitivo-comportamental, as emoções também não são muito importantes, pois o que interessa são os comportamentos... E podia continuar eternamente a falar de uma coisa que, na realidade, não é muito diferente dos fisioterapeutas “reeducativo” vs. “manipulativo” do início do texto. Gostava só de acrescentar que tive de ser eu, em face das minhas crescentes ruminações obsessivas, a sugerir ao meu psiquiatra que passasse Anafranil. Graças a Deus que tenho livros e Pubmed que me expliquem o tipo de medicação adequada a um obsessivo. Posso também dizer que esta medicação – para muitos excessiva – revolucionou os últimos anos da minha vida, tendo tido mais qualidade de vida nos últimos dois ou três anos do que em qualquer outro momento. “Placebo” ou não, o que é certo é que nada me tem resultado como a medicação. Como é o psiquiatra que passa a medicação, resolvi abandonar a terapeuta cognitivo-comportamental, e continuar com o meu psiquiatra/psicanalista. Mas, sinceramente, tenho de dizer que começo a ficar farto! Pois, para ele, eu continuo a ter uma fixação num estádio freudiano rudimentar. Quando publiquei o meu livro “O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo: Introdução ao conceito de Reeducação Postural”, até isso era mera “intelectualização” e “omnipotência bissexual”. Suponho que para a outra terapeuta tal seria “pura obsessão”. E, numa altura em que já percebi que é a medicação que me dá qualidade de vida, será que sou mesmo obrigado a ter de gastar rios de dinheiro e tempo a aturar o “delírio interpretativo” dos terapeutas?...
Estas duas histórias demonstram bem o perigo do “radicalismo” gerado pela fixação, aparentemente objectiva, num determinado modelo clínico. Por mais obsessões que tenha, o meu psiquiatra vai sempre dizer que tudo não passa de “angústia de separação”. Um outro psiquiatra – não psicanalista – terá, provavelmente uma visão mais nosológica... e, portanto, pragmática. Na realidade, a única coisa que quero é ter a “qualidade de vida” que mereço. E isso inclui o meu direito às minhas leituras obsessivas, as quais me dão prazer... Enquanto que mais de 90% dos meus sintomas obsessivos, aqueles que considero “a mais”, desaparecem com um só comprimido de Seroxat + Anafranil. Pergunto se não será correcto seguir o modelo que parece mais “científico”, ou seja, aquele que parece dar resultados... Ora, a verdade é que há certos terapeutas que estão de tal forma obcecados por determinado “modelo” que não conseguem ver mais nada à frente. O orgulho sobrepõe-se à objectividade.
A questão dos modelos é, obviamente, muito semelhante à questão dos “paradigmas” científicos de Thomas Kuhn e também à questão das “epistemis” de Foucault. Estes pensadores, tendencialmente relativistas e pós-modernistas, acreditam que não há uma Verdade, mas sim diversas verdades, e que, na realidade, a variação relativista das coisas é inerente a certas condições sócio-histórico-culturais. Assim, diferentes métodos de tratamento clínico das doenças podem ser explicados por diferentes “tempos paradigmáticos”. Por exemplo, segundo Foucault, a minha perturbação seria considerada loucura no século XIX, e seria tratada provavelmente através de sangrias, e seria considerada como “fenómeno místico” próprio dos mágicos na Idade média (não sendo, portanto, sequer tratada).
O que me leva a escrever este texto é, em parte, a indignação perante a rigidez dos proponentes de determinados paradigmas. Por exemplo, se acreditar que a hérnia discal de determinado doente está associada à rigidez muscular dos músculos lombares desse mesmo doente, trato-o com manobras de alongamento da lombar. Mas essas mesmas manobras podem prejudicar o mecanismo mecânico inerente à própria hérnia discal. Ou seja, o “meu” método pode, porventura, ser prejudicial ao doente. Mas mais prejudicial do que isso é a manutenção do mesmo método, quando já se provou que ele não é eficaz! Darei um exemplo da história. Um doente sofre de “humores” e é realizada uma sangria. Não melhora, portanto as sangrias aumentam. Continua a não melhorar e as sangrias aumentam ainda mais. O doente acaba por morrer. Qual a conclusão dos seus médicos (os tais que lhe fizeram a sangria)? Não se fizeram sangrias suficientes!... Penso que dá para se perceber a “mensagem” da questão. Nos tempos que correm, depois de anos a advogar intervenções psico-morfo-analíticas de tratamento da causa da perturbação, pergunto-me até que ponto é que vale a pena perder anos e anos a fio a tratar um doente com base num método que pode estar errado, ou que, a estar certo, demora demasiado tempo a resultar... Ou seja: é possível que eu esteja há anos no psicanalista a fazer uma análise que nunca surtirá resultados na minha perturbação. Mas, mesmo atendendo que o meu psicanalista tem razão, e que as causas da minha perturbação são a “angústia de separação” e a “fixação anal”, não sei se vale a pena ser tratado durante décadas para obter uma melhoria pouco significativa... Ou seja, mesmo sendo tudo “verdade”, é possível que o método psicanalítico não seja eficaz no tratamento da minha perturbação ou que não a trate num tempo adequado.
Na Fisioterapia, temos também o exemplo das terapias neurológicas. Se determinado doente tem um AVC e fica com uma hemiparésia, este fica, em geral, com um lado do corpo afectado e outro lado bom. Os métodos mais recentes de Fisioterapia neurológica advogam o tratamento do lado afectado de modo a se criar maior simetria na postura e movimento, e, numa linguagem mais neurofisiológica, de modo a aproveitar as vantagens inerentes aos mecanismos de neuroplasticidade. Mas esse trabalho centrado no lado afectado do doente poderá significar que a sua actividade (do lado remanescente) terá de ser reduzida; ou seja, é preciso impedir o doente de realizar “mais” função para que ele tenha “melhor” função. Então e se o doente precisar desenfreadamente de andar de forma independente? E se ele precisar de um auxiliar de marcha? Segundo os modelos que refiro, o doente não pode fazê-lo, mas o que é verdade é que o contexto sócio-familiar do doente poderá significar a obrigação da “quantidade”, mesmo que em desprimor da “qualidade”. Aqui, torna-se bem patente que é necessária uma visão flexível das coisas, não presa a certos paradigmas.
A tentação da maioria dos terapeutas, médicos e intelectuais é a de ver a sua verdade como a Verdade absoluta. O que proponho a estes mesmos profissionais é o conhecimento mais aprofundado da epistemologia científica e metodológica. Em especial Karl Popper é muito pertinente. Este filósofo não é propriamente relativista, pois acredita na existência de uma e só uma Verdade. Acredita, portanto, na existência de uma Realidade exterior única. Aliás, não foram poucas as vezes que Popper falou da “pobreza do historicismo” e do “relativismo” como “doença dos pensadores”. Por outro lado, Popper também não é “positivista”, ou seja, ele não refere a existência de uma Verdade que se mantenha como plena e inalterável. Diz, sim, que a generalização, a actividade indutiva, a qual ainda actualmente continua a orientar muita da actividade científica preconizada, é um erro, e que toda a Verdade é meramente temporária. Para além disso, para Popper, uma teoria só é suficientemente “verdadeira” e com carácter de cientificidade, se apresentar as condições em que a mesma se torna falsa. Isto refere-se ao critério da falsificabilidade. Precisamente por não ser falsificável, Popper criticou veementemente a psicanálise, pois esta dá sempre uma qualquer explicação face à realidade das coisas.
Vejamos porque é que a Psicanálise nunca poderá ser considerada científica. Tomemos como exemplo a homossexualidade. Segundo os psicanalistas, a homossexualidade masculina deriva da integração de uma dominância materna. Ou seja, os rapazes homossexuais tiveram todos uma mãe dominante e um pai passivo ou ausente. Ora, Popper perguntaria logo: e o que fazemos relativamente aos homossexuais que foram criados pelo pai ou que tiveram um pai presente e dominante? Os psicanalistas também têm uma explicação para isto. Face à dominância excessiva do Pai, a sexualidade do rapaz ficou medrada face a um Pai “excessivo”. Assim sendo, há sempre uma explicação para a homossexualidade. O que não entendo é por que é que a maioria dos homossexuais não apresentam neuroses ou angústia de separação... O meu psicanalista diria que o homossexual não tem sintomas porque “regrediu” para um estádio de desenvolvimento infantil confortável. E perguntaria eu mesmo: e os bissexuais sem neurose?... E isto poderia continuar eternamente...
O que pretendo reforçar aqui é a necessidade de cientificar a realidade clínica das coisas. Mas na realidade nunca se viu tanta disparidade em diagnósticos médicos e em terapêuticas realizadas. Perante a enorme subjectividade existente nestes “caminhos” é, decerto, a saúde do doente que perde! E, ao contrário do que aconteceu com o meu “activismo” consciente, a maioria dos doentes não possui suficiente estado de desalienação relativamente à Saúde. Para eles, a palavra de um médico é sagrada, e a Verdade está nas mãos daquele médico que for dado como mais sapiente ou como maior “Autoridade”. Aliás, nem cabe na cabeça da maioria das pessoas a minha realidade, pois, afinal de contas, fui eu que diagnostiquei a minha doença (o que para os próprios médicos não existe, pois só um médico pode realizar um diagnóstico...), e fui eu que laborei o controlo da minha medicação. Mas a verdade é que a medicação continua a precisar de ser prescrita e os médicos continuam a ser necessários. Posso, claro, sempre recorrer às farmácias on-line, gastando dez vezes mais do que gastaria com uma receita.
Voltando ainda à questão da interpretação psicanalítica, devo repetir que, para o meu psicoterapeuta toda aquela história de bullying não tem importância. Para ele, a minha desvalorização do “masculino” advém da relação precoce que estabeleci com a minha mãe. Ora, o que sinto todos os dias é que a minha desvalorização da masculinidade advém unicamente do facto de ter sido chamado milhares de vezes de “maricas” por outros rapazes. Vejamos algo mais global subjacente a toda a Psicologia. Os psicólogos tendem a acreditar que o temperamento de uma criança está dependente do temperamento dos pais. Quase ninguém se atreve a perguntar até que ponto é o temperamento dos pais que se vai adaptar ao temperamento – preexistente – da criança... E este jogo de “causa-efeito” pode continuar eternamente. Inclusivamente temos de questionar aquilo que se vê como “científico”. Por exemplo, um estudo correlativo poderá estabelecer uma relação, sem margem para dúvidas, entre doença psíquica e relação exagerada de apego materno. Mas, por que é que concluímos logo que é a relação de apego materno exagerado (ou seja, complexo de Édipo mal resolvido) que cria a doença psíquica? Não é possível que seja a doença que faz com que as pessoas possam procurar algum género de conforto numa pessoa que amam?... Afinal de contas, é preciso lembrar que um estudo correlativo não é um estudo de “causa-efeito”.
Portanto, concluo que é fundamental que exista entre médicos e terapeutas, muito especialmente entre aqueles que “mexem” com Paradigmas determinados (ou, em geral, métodos com uma grande carga basilar teorética), um cuidado com toda a forma de radicalismo. Procure-se uma cientificidade rigorosa dos métodos. E, à semelhança de Popper, tenhamos em conta “a pobreza do historicismo”.

quarta-feira, dezembro 17, 2008

O corpo pós-moderno ou as novas indústrias do corpo.

Este "ensaio" tem como subtítulo o seguinte: "Um manifesto proto-filosófico de um fisioterapeuta sobre a (anti)corporeidade do mundo contemporâneo". Fui escrevendo o mesmo durante imenso tempo, sendo que ele assumiu diversas formas. De tanto tirar e acrescentar, e de tantas pesquisas e acrescentos que fiz, resultou um ensaio grande e muito repetitivo. Portanto, não tendo qualidade para ir para um livro ou artigo científico, publico-o aqui no blog. Não que seja um Ensaio mau. Simplesmente resultou numa coisa confusa, cujos conteúdos repetem-se incessantemente. A sua linguagem é complexa, o que, vendo melhor, pode ser mera pomposidade. Não sei! Uma coisa tenho a certeza. Não podia deixar de o partilhar. Ele é mais uma "tentativa de ensaio". Mas não é o próprio "ensaio" sempre uma tentativa? Daí que se chama precisamente "Ensaio". Deixo a sua qualidade ao vosso decidir.
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O corpo humano ocupa um lugar de destaque nas sociedades modernas. A tentativa de o dominar e transformar é, na modernidade, maior do que alguma vez se constituiu. Aliás, é (e sempre foi) bem patente que os homens necessitam de dominar o seu próprio corpo de modo a sentirem que todo o espaço por ele ocupado é igualmente objecto de domínio telúrico. Para além dos espaços sócio-físicos e do conjunto prolixo das diversas mundividências em que se move (e transpõe) o ser humano, o controlo da “forma” do corpo, e do conjunto das sensações emanadas pela sua concretude, protagoniza uma das grandes metas do homem moderno. Na realidade, o homem coetâneo pretende transformar o seu corpo num objecto maquinal, capaz de responder às mais incessantes necessidades estéticas e de prazer (as quais são, em boa medida, e como veremos, apanágio de necessidades mais viscerais). Dentro desta dimensão transformista e reformista do objecto corporal, o corpo torna-se verdadeiramente um “objecto de consumo”, sendo que se torna vulnerável às mais opressivas culturas industriais e de mercado.
Segundo Jean Baudrillard, autor muito pertinente para a nossa análise, a descoberta do corpo, “após uma era milenária de puritanismo, sob o signo da libertação física e sexual, a sua omnipresença na publicidade, na moda e na cultura das massas – o culto higiénico, dietético e terapêutico com que se rodeia, a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objecto de salvação, substituindo literalmente a alma nesta função moral e ideológica. Significa isto que o corpo não é uma evidência, o corpo é um facto de cultura.” Na realidade, ninguém poderia ter exposto melhor a relação que, na comtemporaneidade, o corpo tem estabelecido com a “sociedade de consumo”.
Este “objecto cultural” a que se refere Baudrillard é, de alguma maneira, transversal a todas as sociedades humanas, apesar de que, nas últimas décadas, tem-se constituído um tipo de fenómeno de carácter industrial, associado globalmente a todas as classes de “uma certa burguesia” (proponentes, ou não, de um depurado neo-liberalismo), mais premente nas sociedades com menores necessidades básicas (pelo menos aparentemente) e mais denodada ocidentalização.
Assim sendo, o corpo tem ocupado um lugar cada vez mais flagrante numa sociedade cuja “falha narcísica primária” se torna cada vez mais evidente, apesar de parcialmente inexplicável. A divisão clássica de Nietzsche dos tipos de “Sociedade” em “dionisíaca” e “apolínea”, realizada no seu “O nascimento da tragédia”, viria, inclusive, a possuir uma importância fundamental no sentido em que os modernos antropólogos referem que a “falha narcísica” do tipo “corpórea” é maior nas sociedades dominadas crescentemente pelos impulsos mais basilares (sociedade dionisíaca). Por exemplo, Mischa Titiev, na sua obra Introduction to cultural anthropology (1987), deixa bem aclarado que o nível de desajustamento psicoemocional tende a ser maior nos indivíduos com uma composição antropomórfica do tipo endomórfica em sociedades essencialmente dionisíacas. Pena que tal epifenómeno não seja acompanhado do entendimento de que o Homem e a sua humanidade só fazem sentido num processo florescente de racionalidade, em sociedades tendencialmente “apolíneas”, ou seja, sociedades educadas e racionalizadas num ponto de diferenciação importante relativamente às mais organizadas sociedades animais (que não deixam, contudo, de ser assaz coevas). A preocupação crescente pelo “objecto corporal narcísico” atesta a nossa sociedade como aproximativa de um tipo de regressão aos impulsos mais básicos, processo naturalmente incoerente face aos progressos alfanges da tecnologia e da busca existencial. Se uma certa necessidade “analítica” reafirma a carestia de um processo contínuo de busca de elementos da estrutura freudiana do Id, não deixa de ser bem claro que a evolução do ser dito “estritamente humano” está plenamente dependente da firmação das estruturas superconscientes e hiper-morais do comportamento social. Assim sendo, a análise do inconsciente fica restringida a certas necessidades (psico)analíticas e fantasmáticas, enquanto que à necessária estruturação humana (e, portanto, evoluída) requeremos a compleição do “princípio da realidade”.
Não obstante a referida criteriorização, a “problemática do corpo” possui traços comuns a todas as culturas, cabendo sobretudo a antropólogos o estudo comparativo dos caracteres comuns a certas práticas, assim como aquilo que distingue o esquema identitário de cada sociedade. Desde a genética e a biologia evolutiva, passando pelos estudos relativos às ciências da hominização, até às ciências ditas “histórico-sociais” (como a etnologia ou a sociologia), o corpo tem sido estudado em dois grandes termos: como “traço”, um “absoluto” ou “universal” comum a todas as diferentes culturas e sociedades, e como “fase”, um dado relativo, o corpo visto enquanto epifenómeno sócio-histórico, algo que varia e se diferencia tenazmente de cultura para cultura, de sociedade para sociedade, de classe para classe e de família para família. A meu ver a antropologia constitui-se como a ciência comum ao estudo do objecto corporal (para não referenciar as modernas, e dissemelhantes, morfopsicologia e psicomorfologia). Se a medicina e as “ciências físicas do corpo” se interessam mais pela antropologia física ou morfológica, a psicossociologia interessa-se mais pela “antropologia cultural”; mas é um facto que a antropologia consubstancia um conjunto de dados científicos muito diversificados, os quais se prolongam no seio de um largo espectro bebido de dicotomias como o eterno – e sempre polémico – binómio universal-relativo.
Se o corpo é um artefacto das formas mais básicas de expressão cultural, comum às sociedades animais, o corpo enquanto “artefacto industrial” comuta um novo tipo de fenómeno humano (portanto, supra-animal), um fenómeno que não pode ser perspectivado em independência daquela área da filosofia que se preocupa com a expressão artística: a Estética. Pois, seja porque a esteticização compulsiva do corpo “moderno” se constitui em torno de um Universal estético – decerto ligado a dados compreensíveis face à biologia genética e evolutiva – seja porque as práticas ou ritos corporais laboram numa “estética social” diferenciável culturalmente, a beleza, nas suas mais básicas premissas, demarca a óptica basilar do fenómeno bio-social do corpo. Aqui está bem patente, à vista até dos mais desatentos, a já clássica divisão inato vs. adquirido, sendo que é de sublinhar que o fenómeno que podemos chamar de “indústria do corpo”, apesar de possuir uma aparência de fenómeno estritamente humano (e, portanto, fundamentalmente cultural), releva de um conjunto de elementos circunvizinhos da pulsionalidade mais ancilar. Nesse sentido, o fenómeno do “corpo industrial”, à semelhança da Estética mais universal, pode ser fortemente consubstanciada numa forma de “inconsciente colectivo”, que o mesmo será dizer que a psicossociologia é, em muito, função da biologia e da genética (assunção que é, na realidade, infantil, para quem medra diariamente nestes temas).
Interessa à nossa discussão a visão do corpo enquanto fenómeno industrial próprio das sociedades onde a revolução industrial soou de forma mais estrepitosa. É neste tipo de sociedades industrializadas, sociedades em que, supostamente, o princípio obsessivo de negação dos impulsos mais primitivos seria mais premente, o fenómeno de esteticização e vivência da efeméride corpórea constitui-se como um contra-senso fulcral. Ou seja, numa sociedade modernista ou pós-modernista em que os dados do hiper-racionalismo estão lançados, existe um eco de “regressão corpórea”, demonstrativo, por um lado, de um tipo de reclusão psicológica e etnocêntrica em que os “actores sociais” se afundam progressivamente, e, por outro lado, de um fenómeno singelo comum às sociedades modernas que é a utilização do corpo como sustentáculo de indústrias ditas “culturais”.
O corpo é, assim, palco de uma série de destemperos próprios da fenomenologia social, estando os respectivos fenómenos ou artefactos do “uso corpóreo” estritamente associados ao mercado e à cultura de massas. Em particular, a linha de corpo enquanto “forma”, tem dominado todos os sectores da sociedade contemporânea, até um ponto em que, a meu ver, o corpo e as práticas narcisistas com ele associadas podem ser incluídas no grupo das “indústrias culturais” de Horkheimer e Adorno. Aliás, o conceito de alienação, sobretudo aquele que foi propugnado em Frankfurt nas primeiras décadas do século XX releva de uma importância matricial relativamente a um fenómeno claramente relacionado com a explosão do Capital. Essa mesma alienação assume o formato de uma “super-verdade”, que, apesar de ser anacrónica e até maniqueísta, se constitui enquanto Realidade inexorável, Verdade absoluta, negando a individualidade e a lucidez propiciada pela consciencialização (progressiva) do self. O corpo enquanto estrutura lacunar assume-se como um dado adquirido, inerente à expressão social mais desapiedada, confundindo-se com o extremismo basilar de um poço de pulsões feitos impulsos (vide o “inconsciente” freudiano e o “inconsciente colectivo” jungiano, de resto já anteriormente aludidos). Ainda em matéria de filósofos pós-marxistas, Marcuse e Benjamin vão traçar algumas das concepções arquetípicas da sociedade hodierna, enquanto que os filósofos existencialistas – inicialmente Sartre – vão aproximar o seu discurso de uma visão algo “revolucionária”. A visão de “alienação” dos marxistas e existencialistas, tão beatificada no Maio de 68, vai ser modernamente tratada, de forma mister, por teóricos como Bentham, Sloterdijk e, muito solenemente por Foucault, o qual, este último, concebe o mundo alienado como estando nos limites da “normalização no dia-a-dia”. «Tudo, assim, no mundo dos limites da “normalidade” do mundo social. Mas tudo também nos limites de uma sua normalização. Porque a prisão e o hospício são solidários da fábrica e da escola, e todos eles do quartel. Numa ideologia comum de formatação, acantonamento, vigilância e punição, que se metamorfoseia mas persiste. E em que, em todos os casos, não temos sujeitos autónomos, mas seres-objectos que desempenham papéis que previamente se encontram traçados e lhes são simplesmente distribuídos. O dar-se conta das múltiplas e dominantes estruturas conformadoras e repressivas leva a encarar o poder de uma forma diferente: perdendo o seu sentido centralizador e ainda dados de sentido (e talvez até mais dador de sentido quanto mais totalitário...), para se tornar, de novo, uma estrutura complexa, que a si mesma se alimenta, mas sem qualquer conteúdo ou transcendência, ou seja, o poder-tecnologia, o poder apenas auto-subsistente, funcionalizador dos outros, e, hoje em dia, cada vez mais um biopoder, reificador das pessoas e funcionalizador das pessoas como corpos.» (Paulo Ferreira da Cunha, Filosofia Política Contemporânea (desde 1940)).
Falando, então, da “indústria do corpo” enquanto forma, ou seja, da utilização do corpo como objecto (teleologicamente) narcísico, podemos referir três grandes “indústrias culturais” que têm tomado palco na nossa sociedade de uma forma assaz sub-reptícia e que se encontram fortemente relacionadas com o Sistema do Capital: a indústria do “bem estar” (Wellness), as medicinas ditas “não convencionais” e o condicionamento físico (Fitness).
Iniciando a nossa análise pela “indústria do ‘bem-estar’”, podemos dizer que esta tem ganho tantos adeptos que tem-se tornado fonte de lucro incomensurável para imensos “profissionais”. Esteticistas, massagistas e terapeutas proponentes de imensas “técnicas orientais” têm possibilitado a edificação de um conceito artificial de “saúde”, levando a que o termo perca o seu estatuto em prol de uma certa ideia de “prazer efémero”. E não são poucas as vezes que as pessoas, pobres para o Serviço Nacional de Saúde e as mais variadas terapêuticas do Sistema, demonstram possuir meios para realizarem as suas massagens relaxantes e/ou de emagrecimento (para além das incontáveis depilações, saunas, limpezas de pele, tratamentos anti-celulíticos, spas e outros “feitiços da mente”), assim como as massagens Tui-na ou ayurvédica, ou para receberem os seus toques de Shiatsu e de reflexologia (estas ditas de “massagens terapêuticas”... mas “terapêuticas” em quê?... naquilo que advogam ou no padrão de relaxação e escapismo que concedem?...). Neste último ponto, a indústria do “bem-estar” colide com outra indústria (semelhável à primeira): a das medicinas ditas “não convencionais”.
Em termos gerais, os números relativos ao Wellness são imprecisos mas tendem para a ordem dos milhões de euros de lucro relativamente às grandes empresas americanas e europeias. O Wellness é quase uma condição obrigatória das boas condições de “higiene mental e diplomática” dos países ditos desenvolvidos. A sua relação com a estética (sem maiúscula, pois não de cariz hermenêutico) é avassaladora, resvalando numa cronicidade arrasadora de mentes e carteiras, e prestadora de um certo número de razões da ordem do superficialismo mental mais insinuante.
É certo que o trabalho de um esteticista ou de um massagista pode roçar os efeitos – positivamente terapêuticos – de umas mãos capazes de propiciarem a evasão, o escape perante o clima psicossocial mais cruento, ou de uma relação que pode transgredir os limites da aceitabilidade politicamente correcta. Mas também é certo que uma certa psicanálise nos ajuda a perceber que o conjunto da indústria do bem estar e da estética propiciam, sobretudo, a procrastinação da verdadeira resolução dos conflitos mais larvares, assim como podem ajudar a mascarar um conjunto de manifestações clínicas psicogénicas de grande (potencial) relevância. Em particular, se a massagem pode, segundo alguns teóricos, propiciar a regressão (analítica), também pode ajudar na elisão relativamente ao cenário psicológico necessariamente revelador e, portanto, a não escamotear!... O nível de ubiquidade inerente aos efeitos deste tipo de “terapêuticas” justifica um nível de cuidado que os mais heterodoxos “terapeutas” não conseguem prever (sobretudo, por possuírem exígua formação e/ou sensibilidade técnica). Não consegui ainda, de facto, perceber se a acção do esteticista/massagista permite o aumento ou a redução dos níveis de consciência corporal. Seria interessante estudar o conjunto desses efeitos. Mas de uma coisa tenho a certeza absoluta: não é racional, e muito menos responsável, admitir que o caminho para a “salvação” psicológica (e a realização narcísica do Eu) pode ser conseguido pela mera consecução de um método de trabalho corpóreo; e isto inclui o conjunto dos métodos do mundo do fitness – a tratar mais adiante – que têm sido pomposamente designados de holísticos ou psicofísicos. Deixemos, portanto, muitas destas questões, decerto mais complexas do que parecem, para a área científica da Psicossomática. A aquisição de “consciência corporal” pode marcar a diferença na vida privada do sujeito, mas não é – aliás, nada é – uma panaceia.
Ainda relativamente às “massagens”, é certo que tanto podemos encontrar, sob os escaparates de um publicismo sempre escabroso, o rótulo “massagens relaxantes” como o rótulo “massagens terapêuticas”. São títulos enganosos, lodosos, e até perigosos, mas sempre são preferíveis à verdadeira aldrabice inerente a “massagens de emagrecimento” (a não ser, claro, que esse emagrecimento se refira ao massagista). Nos títulos referenciados anteriormente, as “massagens” aproximam-se muito de um tipo de medicina “alternativa”, que, por conveniência formal ou mera estilística de aspeito, têm sido ultimamente designadas de “medicinas não convencionais”.
E já que de “massagens” falamos, podemos tentar dar ideia da grande prolixidade de “métodos” existentes... Sentemo-nos, debitemos, e tentemos recitar o nome tão grande quanto possível de tipos de massagem: Anma, Ayurvédica, Biodinâmica, Bioenergética, Californiana, Chavutti Thirummal, Desportiva, Dorn/Breuss, Drenagem Linfática Manual (vários métodos), Indian Head Massage, Kalari, Reflexoterapia, Reiki Dinâmico, Rolfing, Sacro-Craniana, Shantala, Sueca, Shiatsu, Massagem de Tecidos Profundos, Tibetana, Thai-Yoga, Tui-Na e Watsu, entre outras. Qualquer semelhança com o puro marketing só pode ser mera coincidência...
As medicinas não convencionais são também, e sobretudo, a expressão de uma indústria cultural. Aparentemente são uma outra forma de “ciência”, uma alternativa legítima e recomendável ao tratamento de patologias refractárias aos tratamentos mais ortodoxos. Mas, na prática, consistem em terapias não radicalmente diferentes das mais convencionais, sendo que tendem a sobressair comercialmente única e exclusivamente devido ao poder da “Imagem”; imagem essa que propõe um ícone místico a fenómenos parcialmente explanáveis pela ciência médica (obviamente, de forma menos “explosiva” e histriónica). Assim sendo, terapias progressivamente afamadas como a quiroprática, a termoterapia, a aeoroterapia, os banhos, a helioterapia, a cromoterapia, as massagens terapêuticas, a magnetoterapia, a terapia floral de Bach e a homeopatia possuem um poder social de fundo “estético” muito semelhável às alegóricas medicinas orientais (acupunctura, digitopunctura, auriculopunctura, reflexologia, iridologia, moxibustão, Qigong e Tai-chi, shiatsu, pulsos chineses, ioga e Ayurveda), podendo inclusive roçar a “seriedade” da medicina tradicional indígena (curandeirismo, xamanismo, macumbas, espiritismo, bruxaria) e de um certo “poder curativo da mente” (hipnotismo, toques curativos, sofrologia, magia, cristaloterapia e cartomancia).
A crescente atracção dos países ocidentais por este tipo de cultura maioritariamente “oriental” releva da importância da diferenciação cultural, face ao desgaste, cada vez mais notório, da personalidade e identidade colectivas relativamente a uma cultura ocidental crescentemente poluta, formalizada e desindividualizante. Por outro lado, o crescimento das terapias menos convencionais é também o reflexo do funcionamento dos sistemas de saúde adstritos a cada país. Principalmente nos países onde o Sistema de saúde do Estado é gratuito, e muito particularmente em Portugal (e países limítrofes), as insuficiências de um sistema que gere exames e tratamentos segundo critérios essencialmente economicistas levam a que os cidadãos procurem alternativas mais radicais; alternativas essas que têm de constituir uma resposta genuinamente diferente, como se existisse uma necessidade de fuga ao “convencional”, uma atracção pelo politicamente incorrecto, portanto a busca por uma resposta que expressa o pendor pelo oculto e a nomeação de um manancial espiritualista.
Voltando a referir a questão da maior ou menor evidência “científica” das medicinas não convencionais, é preciso atender a que a falta de falsificabilidade científica (na linguagem conhecidamente popperiana) transcreve as diferentes “terapias alternativas”, de maneiras dissemelhantes: por exemplo, a osteopatia e a fitoterapia têm menos a provar que a quiroprática ou a homeopatia, no sentido em que as primeiras estão mais próximas das terapias convencionais, em termos ditos metodológicos. Por outro lado, certos “epifenómenos” das terapias menos convencionais, como as “energias”, os meridianos e os pontos de acupunctura, o “Chi”, o equilíbrio Yin-Yang, e os pontos de reflexologia (todos relacionados, em maior ou menor grau, com a filosofia taoísta), têm ainda muito a provar em termos científicos... apesar de ser quase intuitivo que é bem possível que esses mesmos “arquétipos” possam ter algum tipo de tradução na gíria (científica) neurológica e endocrinológica. Assim sendo, parece bem patente que é potencialmente possível, e decerto desejável, que se construam pontes de entendimento, tanto científico quanto metodológico/prescritivo, entre os diversos métodos ou abordagens de terapêutica psico-física. Em última análise, todas as terapêuticas, incluindo as centenas de métodos que consubstanciam a Fisioterapia, devem ser vistos numa dinâmica conceptual de “paradigmas”, no sentido em que os diferentes métodos de intervenção possuem um comportamento “científico” que pode e deve ser entendido na perspectiva clássica de Kuhn (ou na perspectiva sócio-histórica das epistemis de Foucault e dos pós-modernistas em geral), a caminho de algum tipo de “ciências da complexidade” (Edgar Morin). Nesta temática, não pode deixar de sobressair a clássica (e, eventualmente, beligerante) dicotomia conceptual entre universalismo-relativismo (com o universalismo a ser representado pelo que de comum e parcimonioso há nos diferentes métodos – representando a necessária construção de uma “navalha de Ockham” metodológica –, e o relativismo a ser representado pelas divisões teoréticas e pragmáticas – candidamente espúrias – que demarcam os “diferentes” métodos).
Mas gostaria de deixar, mais uma vez, bem saliente que, a meu ver, a grande diferença entre um certo tipo de terapêuticas não convencionais e a terapêutica convencional passa por uma mera questão de aparato estético e/ou místico. Vejamos um exemplo extremamente simples: a terapia por pedras quentes. Certos terapeutas propugnam o poder deste tipo de terapias, referindo-se a uma série de argumentos de fundo pseudo-geológico, mas, no fundo, esta terapia não será assim tão diferente dos “calores húmidos” utilizados tradicionalmente nas clínicas de Fisioterapia, sendo que em ambas está em vigor a temática (científica) dos “agentes físicos”. Vejamos outro exemplo que considero especialmente modelar: a acupunctura. No meu entender, os efeitos deste tipo de terapia centram-se sobretudo na dor. Sem querer entrar em pormenores do foro técnico, posso dizer que há razões de teor “neurológico”, relacionadas com o funcionamento de certos conjuntos de fibras nervosas e dos denominados “mecanismos de controlo descendente do Sistema Nervoso Central”, que equiparam os efeitos da acupunctura aos de métodos fisioterapêuticos de electroterapia (como a terapia TENS, tacitamente cientificada por Wall & Melzack). Mas, a acupunctura tem sido de tal forma mistificada que o Sr. Dr. que espeta uma série de agulhas em zonas específicas e milenarmente estudadas do corpo possui um conjunto de resultados forçosamente “superiores” aos de um conjunto de correntes eléctricas que o técnico auxiliar de fisioterapia, (supostamente) um “Zé-ninguém”, utiliza sob prescrição médica. O mesmo género de “relevância mística” poderá ser encontrado no respeitante, por exemplo, à reflexologia, a qual, em última análise, não passa de um conjunto de massagens... mas justificadas “misticamente” por um certo tipo de “barganha” conteudística!...
Tanto a questão da “mística” quanto a questão relativa a modelos ou paradigmas teóricos e metodológicos pode ser bem demonstrada pela necessária, e especialmente relevante, comparação entre a osteopatia e a fisioterapia. A área da Fisioterapia que tem sido denominada de “Terapia manual” é utilizada de forma muito sapiente por vários fisioterapeutas; aliás, o número de teóricos das “terapias manuais” é imenso (tendo inclusive gerado um conjunto muito avultado, senão enganoso, de modelos e formações)! E em que é que essas terapias manuais se diferenciam da osteopatia? Segundo os osteopatas, em muita coisa! Aliás, segundo os osteopatas, a osteopatia possui modelos de avaliação e intervenção clínica completamente diferentes da Fisioterapia. Só falta provarem-no, pois, até agora, não encontrei qualquer argumento que me leve a aceitar que a Osteopatia assente num modelo (avaliativo/interventivo) genuinamente diferente da Fisioterapia. É certo que a Osteopatia possui uma história bastante dissemelhante da Fisioterapia, sendo que a primeira aparece associada a um tipo de “autonomia profissional” que o fisioterapeuta ainda está longe de possuir. Aliás, verdade seja dita, a profissão de fisioterapeuta foi criada pelo médico fisiatra (inicialmente médico fisioterapeuta), o qual não queria sujeitar-se a certo tipo de trabalho (físico e, portanto, desgastante). Já a profissão de “osteopata” surge inicialmente no mundo anglo-saxónico (sabidamente nos finais do século XIX), e nesse mesmo ambiente geo-cultural, a profissão de osteopata e a profissão de fisioterapeuta aparecem bem distinguidas, inclusive no panorama formal/político. Fora do contexto anglo-saxónico, ainda não acalentei razões que me fizessem crer que as “manipulações osteopáticas” sejam relevantemente diferentes das “manipulações fisioterapêuticas”. Concluindo, inerente à questão dos “paradigmas” está sobretudo uma questão de “semântica”. Penso que um filósofo diria que, inerente a Kuhn, está a filosofia, muito mais profunda e reveladora, de Wittgenstein, pois, em última análise, são as diferenças de conteúdo relativamente aos signos que explicam muitas das dificuldades comunicativas interdisciplinares.
Talvez aqui faça sentido falar, igualmente, do importante e mediático “efeito placebo”. Efectivamente devemos desconfiar de todas as terapêuticas que não se apresentem cientificamente consubstanciadas em estudos adequadamente realizados e que incluam um “grupo placebo”. O efeito placebo não deve ser visto só como um efeito psicológico associado a certos mecanismos psiconeurológicos que são despertados pela mera utilização das terapêuticas. O efeito placebo advém, em muito, da crença nos métodos, mas sempre associada a um certo poder de sugestionabilidade induzido pelo próprio terapeuta; na realidade, o efeito placebo será muito mais notório se estiver incluído no contexto de uma “relação terapêutica” de qualidade. Sem a qualidade de uma relação adequada entre o terapeuta e o doente o efeito placebo não terá o mesmo género de factibilidade. Por outro lado, por meros imperativos éticos, é importante ter a certeza absoluta de que uma terapêutica não resulta pela mera imposição de um conjunto de factores de carga meramente psicogénica. Claro que nem todos os terapeutas pensam nisto: uma terapia deve continuar a ser utilizada na medida em que resulta, mesmo que esses resultados advenham do mero efeito placebo? Muitos profissionais acham que pouco interessa aquilo que está na base dos resultados, pois aquilo que interessa é que certos resultados surjam. É bem notório que surge aqui uma temática quase ancestral na Ética filosófica e axiomática: a divisão entre deontologia e consequencialismo. Se o que interessa é o “resultado”, independentemente dos meios utilizados para tal, estamos a ser claramente consequencialistas, o que tem sido visto, por quem estuda fervorosamente Ética, como uma forma disfarçada de perigoso niilismo. O mesmo será dizer que a grande maioria dos teóricos (baseados numa Ética fortemente kantiana) concordará que é preciso que exista um “efeito real” nas terapêuticas, ou seja, é preciso existir um conjunto de regras deontológicas relativas à prática terapêutica, coisa que é estranha na mente de muitos dos utilizadores das técnicas terapêuticas tratadas.
Assim sendo, podemos concluir que, é precisamente por o mundo ocidental ser marcadamente materialista que muitas das medicinas “complementares” têm tido um demarcado sucesso, pois é no contexto da “desilusão concretista” que a resposta abstractizante consegue ter margem para se mover. E não será difícil perceber – ou mesmo sentir – o fascínio que todos nós possuímos pela emergência do inexplicável, pela convergência de uma série de factores espiritualistas que o mundo ocidental tem visto e tratado com uma certa misantropia, com um certo esgar judio, como se essas “ciências” pudessem resolver toda uma situação de vida. Pura ilusão, direi eu! Pois não há nada – mais concreto ou mais espiritualista, que se resolva com uns quantos chás ou umas meras agulhas ou trepanações... a realidade tem múltiplas vertentes e é nessas múltiplas e sempre modificáveis vertentes que devemos encarar a questão da saúde vs. doença. A vida, e a sua qualidade, estão, pois baseados numa complexa e sempre titubeante multidimensionalidade. Toda a tentativa de simplificação, de redução formulística, deverá ser vista como mera falácia. Não quero, contudo, cair num nível de relativismo tal que passe a ser visto como anti-positivista e anti Karl Popper; que o mesmo será dizer que o tipo de relativismo que propugno não pode ser confundido com o pós-modernismo ou qualquer outro “princípio da incerteza”. Pois o pós-modernismo tende a justificar tudo e tudo desculpar. E, assim, acabaríamos por concluir que aquilo que aqui tenho identificado como “indústria cultural” é aceitável face a uma qualquer perspectiva auto-poiética.
Resta falar da indústria do “condicionamento físico”. Desde tempos imemoriais que o homem tenta medir os seus limites físicos, tentando aperceber-se das barreiras que constrangem o corpo humano. Essa tem sido a filosofia basilar (e algo ingénua) das Olimpíadas e de todas as competições desportivas de alto nível (na realidade, não deixo de admirar a busca da perfectibilidade motora nos atletas olímpicos... é pena essa mesma teomania ser tão irracional face à nossa eterna inferioridade física perante os animais). Mas, na realidade, o desporto de competição existe sobretudo para alimentar uma “certa ideia de cultura”, nomeadamente a cultura menos ortodoxa e mais simplista do gesto motor, amplamente relacionada com o poder da Imagem. Por mais que tentemos justificar epistemologicamente a natureza do esforço físico, não conseguimos dar uma razão aceitável a quem não aceita os perigos da actividade física ilimitada. E por mais desculpas que os adeptos da prática física arranjem para sustentar a prática de actividades de fitness, esta não consegue afirmar-se sem o apoio de uma grande máquina comercial e imagética. Na realidade, a maioria das actividades do dito fitness desrespeitam o corpo e as leis posturais pelas quais ele se rege (assumindo essas leis como aquelas que respeitam sobretudo ao conceito de Reeducação Postural do tipo Mézières – esta, por si, relacionada, com a divisão preliminar, absolutamente científica, da musculatura humana em dois tipos: tónica/postural e fásica/dinâmica), mas a assunção de um artefacto estético-narcisista tem levado a que tantas práticas sejam realizadas sem dó nem piedade. Portanto, step, cycling, RPM, body sculpt, powerfit, powerpool, powerjump, body pump, body push, body defense, body Jam, body attack, body combat, localizada, totalfitness, new balance, X55, são tudo sinónimos do mesmo alarvismo com que tantos instrutores tentam “delinear” o corpo dos utentes. Claro que há também o Pilates, o Yoga, o Chi-Kung e o Tai-chi, entre outras modalidades ditas “holísticas”... Mas quando será que vamos perceber que até mesmo essas modalidades aparecem impiedosamente desenhadas sob o jugo de um marketing eticamente inaceitável? Quando vamos perceber que o verdadeiro holismo se centra numa coisa muito mais profunda – e decerto menos pop – do que uma modalidade de treino corporal?... É um caminho longo a percorrer, ainda mais porque a indústria do fitness é a mais rentável da América Latina e uma das mais promissoras dos EUA, de Espanha e Alemanha, havendo, particularmente em Portugal, mais de meio milhão de praticantes e vários milhares de instrutores.
Por outro lado, a indústria do fitness concilia a sua actividade com uma série de outras indústrias, como a “indústria alimentar e da nutrição desportiva”, os equipamentos desportivos, a estética e o Wellness, e os “mass media” – sempre preocupados com a divulgação, dominante, das competições desportivas. Neste campo em particular, as últimas Olimpíadas foram, mais uma vez, um exemplo perfeito de uma poderosa “máquina de ilusões”. Desde o espectáculo “supremo” de abertura das Olimpíadas até aos actos de terrorismo físico envolvidos nos diversos recordes batidos, tudo compete no sentido de uma crescente Ilusão, dos quais poucos têm plena consciência. A máquina imagética é de tal forma omnipotente que leva toda uma “cultura industrial” a pensar que o “fogo de artifício” e a “sociedade do espectáculo” (Debord) constituem verdadeiros paliativos psiquiátricos. É pena que ainda não tenha sido obtida uma maturidade crítica suficientemente estrénua, de modo a que se perceba que, não obstante a importância do relaxamento psicofísico, a verdadeira solução para os problemas de ordem psíquica passa por mudanças do “estado de vida” ou na “estrutura psíquica inconsciente”, ou seja mudanças muito mais radicais, complexas e progressivas (e lentescidas) do que aquilo que uma sociedade “escapista” – que propende a efeméride – pretende certificar. Não será pura infantilidade pensar que uma depressão ou uma neurose se pode “curar” através da prática de Tai-chi ou de umas massagens semanais?... Penso que o bom senso de muitos será suficiente para evitar que a resposta óbvia não seja elidida.
É importante atender ao facto de que todas as “indústrias culturais” referidas têm, desde há muito, sido defendidas enquanto “técnicas de saúde”, e os seus profissionais têm sido defendidos enquanto profissionais de saúde. Em particular, posso dizer que muito me envergonho de todos aqueles fisioterapeutas que “vendem a alma” trabalhando em spas e “clínicas” de beleza. A meu ver, estes terapeutas estão tão próximos de ser profissionais de saúde como os instrutores de fitness que “tratam” os utentes todos de uma maneira sincopada e igualitária, sem qualquer piedade pela individualidade – cem por cento idiossincrática – do “corpus” psicofísico individual humano.
Tentando aprofundar a temática, é preciso atender ao facto de que, não sendo despiciendo todo um conjunto de estudos realizados na área das “funções” ligadas à saúde, a ligação entre condicionamento físico (e também o Wellness) e a saúde tem ainda muito que provar, principalmente se tivermos em conta variáveis estruturais e morfológicas, as quais possuem a sua grande expressividade no “longo prazo”. E desse “longo prazo” estrutural, e potencialmente nosológico, poucos dados concretos possuímos, mas uma série de teorias, potencialmente tautológicas, têm demonstrado que a actividade desportiva minimamente intensiva possui um potencial grande grau de “lesividade”. Por outro lado, é de ter em atenção o facto de os estudos actualmente existentes, para além de serem de natureza essencialmente “transversal” nos termos das suas medições, possuem grandes limitações, as quais são escandalosamente omitidas: existência de estudos de natureza não completamente experimental (ausência de grupo de controlo ou do efeito placebo), a ausência do controlo do efeito Pigmaleão de investigação (efeito que as expectativas pessoais do investigador possuem no objecto a testar) e ausência do controlo de variáveis parasitas e intervenientes.
Em particular, as especialidades clínicas da “medicina desportiva” e da “fisioterapia desportiva”, para além de demonstrarem que há “pano para mangas” em termos do tracto de atletas, constituem áreas de intervenção que colaboram com um Sistema obcecado em destruir os corpos de desportistas. Ou seja, ao ajudarem no tratamento das lesões, os médicos e terapeutas do desporto contribuem para alimentar a máquina (biomecânica), fazendo-a perdurar; contribuem, efectivamente, para que o desportista, muitas vezes em condições clínicas que significariam o necessário descanso, possa voltar o mais rapidamente possível à actividade física, levando isto ao desgaste das estruturas anatómicas já por si lesadas. Assim sendo, para além de advogar o Anti-fitness, defendo que a fisioterapia do desporto, perpetrada por muitos colegas meus, constitui um verdadeiro embuste, uma ilusão que permite manter “vivo” o problema estrutural (mediante uma constante procrastinação do processo de “tratamento da causa”), e permitindo, portanto, que uma grande área de trabalho (Fisioterapia desportiva) possa manter-se vivente e lucrativa.
Na maioria dos países europeus, e muito particularmente nos Estados Unidos da América, a profissão de fisioterapeuta tem sido amplamente divulgada pela sua inextricável ligação ao desporto e às competições de alto nível. Assim sendo, é possível dizer-se que existe uma espécie de simbiose entre os terapeutas e o Sistema do Wellness/Fitness, aliança dominante legitimada pelos interesses da sociedade do Capital. Em Portugal, é também por meio do desporto, essencialmente o futebol, que a palavra “fisioterapeuta” se inscreve nos registos dos “mass media”, o que pode ser considerado como uma forma de divulgação claramente sectarista e um tanto viciada.
Um fenómeno adjacente à problemática do fitness e da fisioterapia desportiva respeita à crescente massificação no tracto corpóreo. Pois, tanto nos ginásios desportivos quanto nos ginásios/clínicas de fisioterapia o trabalho com os utentes é feito de um modo que se aproxima, em muito, das características de massificação industrial; refiro-me aos grupos dos desportos de ginásios e ao tratamento fisioterapêutico de, muitas vezes, cinco a dez doentes por hora nas clínicas de fisioterapia. Penso que não é preciso gastar muitas palavras a explicar porque é que tal trabalho massificado não resulta num “bem” para o utente, mas ainda assim posso sempre tentar explicar que, segundo uma perspectiva flagrantemente clínica, a diferenciação nosológica adstrita aos diferentes doentes obriga ao tracto diferencial de cada um deles, pois duas hérnias discais ou duas escolioses são diferentes em diferentes doentes (para citar dois exemplos entre milhares possíveis), e o próprio doente é diferente no “hoje” relativamente ao “amanhã”... diferença que lembra a sucessão de imagens numa máquina do tempo (sim, H. G. Welles está a ocorrer-me à mente!), ou numa “lanterna mágica”. Na realidade, cada segundo da nossa vida expressa uma diferença na composição alquímica do corpo, dissemelhança nunca mais reproduzível (e aqui seria relevante rever a filosofia – pré-clássica/pré-socrática – de Heraclito e também dos atomistas gregos); assim sendo, muito mais compreensível se torna a diferenciação ético-clínica entre diferentes utentes-doentes. Tal “unicidade clínica” é generalizável à totalidade dos sujeitos, independentemente de serem ou não “doentes”, no sentido clássico do termo. Por exemplo, a unicidade postural ou personalística é de tal forma diferenciável e singularizável a cada utente que não faz sequer sentido falar de doença vs. saúde no indivíduo humano. E todos os critérios nosológicos existentes no mundo (mecânico) da medicina moderna não são mais do que paliativos mentais, dados subtractivos do esforço mental potencialmente descomedido, uma forma de proteger os próprios profissionais de saúde. Enfim!... É algo difícil para as pessoas o entendimento de que o mundo é feito de fronteiras totalmente artificiais, e que toda a tentativa de categorização não passa de uma forma de sustentação epistemológica do conhecimento de modo a que o mesmo se torne mais aceitável, mais fácil e digestivo às nossas mentes algo frágeis (quem não concordar pode sempre recorrer à filosofia – iniciática – de Parménides ou de Zenão... com o risco de reproduzirem uma aporia que possui já milhares de anos de existência).
Perante a imanência de tal vacuidade de “fronteiras clínicas”, não deixa de ser claro que o mundo do fitness se torna algo anedótico, principalmente quando lemos nos anúncios do Pilates do Vivafit “Costas mais fortes, cintura mais fina, sem efeitos secundários”. Na verdade, devo dizer que a minha sensibilidade não se coaduna com a emergência publicitária inerente à frase em questão... falsa no seu âmago, falaciosa num sistema de retórica moderna (a qual passa por ser pura sofística). E seja ordenado “rei do mundo” o clínico que admitir que tudo tem efeitos secundários, pois “secundário” não passa de mera categorização, até que “secundário” poderia ser o efeito benéfico que, para mim (ou para outro), poderia ser maléfico. Concretamente devo dizer que não há qualquer tipo de terapia ou abordagem que seja completamente isenta de riscos. E o profissional consciente – e “epistemologicamente conturbado” – deveria dizê-lo ao utente. Claro que tal não seria politicamente correcto e muito menos seria aceitável do ponto de vista de uma boa “estratégia de mercado”. Desconheço se os instrutores do Holmes Place conhecem o verdadeiro sentido da palavra Ética. Já não faço questão que os mesmos conheçam a moral do “imperativo categórico” de Kant ou a moral de uma perspectiva de “unicidade deificada” de Spinoza! Apenas gostaria que os futuros instrutores de fitness – aqueles que nos feéricos tempos modernos poderão comprar casas e carros de algum nível de chorume – tivessem consciência que ninguém tem verdadeiramente um conhecimento adequadamente “absoluto” das funções corporais (que o mesmo será dizer que todos nós deveríamos possuir a atitude heróica representada pela assunção de uma “ignorância socrática”). O corpo é tão complexo nas suas funções e tonalidades que é impossível o clínico mais obsessivo ou mais escrupuloso controlar todos os efeitos que uma terapêutica poderá ter num utente. Portanto, como raio pode ser afirmado que o Pilates não tem efeitos secundários?... Por mais ligeira que seja a actividade física adstrita a determinada prática não é possível prever, em termos absolutos, a totalidade dos efeitos de uma dada práxis. Os instrutores, médicos, terapeutas que disserem que são capazes de o fazer não passam de charlatões... e o maior charlatão, neste contexto, é aquele que denega o poder de auto-visão, aquele que faz por sobressair num punhado de quiméricas visões, estados de alienação algo patológica.
O contexto das indústrias culturais relacionadas com o corpo não pode deixar de ser visto em termos de um verdadeiro “Admirável mundo novo”. E não será despicienda a comparação entre o líder carismático que vence uma eleição livre (?) e democrática e o instrutor de fitness em plena aula de qualquer prática física (preferencialmente “bela” no seu âmago estrutural)... Aliás, o interior de um ginásio como o Holmes Place, que também poderia ser um centro comercial do Belmiro de Azevedo, não pode deixar de ser comparado à realidade de Huxley, ou, para os mais cinéfilos, à realidade do “Metrópolis” do mestre Lang. Neste ponto poderíamos discorrer eternamente. Seja porque as “indústrias corporais” reflectem as desigualdades sociais, seja porque as mesmas reproduzem o teor de uma sociedade alicerçada na ilusão financeira, é certo que não é preciso ser muito sensível para nos apercebermos de que os instrutores das grandes máquinas industriais do Fitness são profundamente despersonalizados; e aí, mais se parecem com os clones de Fritz Lang, os quais vemos, de certa maneira, todos os dias, nas ruas, nas televisões, nos jornais, nos nossos vizinhos, amigos, familiares e em nós mesmos. A máquina de cursos e formações do Holmes Place, ou do crescente número de empresas que formam fisioterapeutas, tem um poder educativo que transcende claramente a capacidade informacional. Não sei se disciplinam ou educam... (aliás não sei se existe verdadeiramente qualquer diferença entre estes termos...) mas sei que, se olharmos para a forma como os diferentes instrutores de musculação ensinam os exercícios a diferentes “alunos” poderemos facilmente perceber que esses mesmos instrutores não são muito diferentes daquelas focas que equilibram bolas nos narizes em pleno espectáculo circense. Bem... o circo é, pelo menos na visão satírica de Cecil B. DeMille, o maior espectáculo do mundo!... (e este circo também poderia ser a visão profundamente visionária do poder de uma imagética, ligada à capacidade de uma Comunicação Social cronicamente corrompida, bem exposto pelo outro “circo”, o “The big circus” de Billy Wilder ou pela obra prima, reflectora da vida de um magnata, de Welles).
Em tempos defendi o necessário renascimento do mundo do fitness, consubstanciado pela introdução no “mercado” de profissionais de alto gabarito, com uma visão clínica e individuada dos utentes, donos de uma (necessária) nova metodologia do treino. Em vários locais tenho defendido que o paradigma “fortalecimento muscular” encerra uma estulta maquinação industrial, a qual não se coaduna com a visão postural e mézièrista do corpo e da saúde. Se tudo indica, segundo as leis Mézières, que uma nova “ordem corpórea”, mais arraigada numa visão de “inibição tónica” e de “relaxamento muscular”, precisa de ter lugar, não posso, então, deixar de defender a criação de uma nova “metodologia do treino”. Ou seja, proponho a revolução na metodologia do exercício físico, a qual significará não só que muitos instrutores – assim como académicos – têm de voltar a questionar uma série de princípios feitos tabu, mas também que toda a “fisiologia do exercício”, assim como os milhares de estudos que a sustentam, tem de ser vista segundo uma perspectiva diferente da actual e necessariamente crítica. E aqui poderia não só defender a necessidade da introdução dos princípios do “racionalismo crítico” de Karl Popper nesta nossa “revolução”, como também poderia presumir a sustentação de uma visão menos “capitalista” do corpo.
Ora, o que é isto da visão “capitalista” do corpo? Trata-se, na verdade, da visão do corpo enquanto objecto apto para o trabalho, prontificado para a máquina de multiplicação industrial dos nossos “tempos modernos”. É óbvio que já lá vai o tempo do proletariado e da sustentação marxista da sociedade. Mas, ainda assim, não deixa de ser factível a criação – bem patente no Portugal de hoje – de uma compulsão higienista, relacionada com o controlo – algo obsidiante – das funções corpóreas relacionadas com o fitness. Nesta dimensão, é bem verdade que o Estado enriquece com menos baixas, e há real e supostamente menos baixas médicas numa sociedade que treina o corpo e o prepara para a reclusão maquinista. Neste contexto, o paradigma “prevenção da doença” tem pontuado de forma exponencial; aliás, nos tempos que correm, estamos todos a falar de “prevenção da doença” e “promoção da saúde” de tal forma que diria que padecemos todos de uma obsessão, a qual, tornada pelo caminho psiconeurose, se transforme num delírio individual e no histrionismo colectivo.
Regressando à necessidade de consubstanciação de uma nova metodologia de treino, diria que toda o processo relativo a um “treino físico” deveria sofrer uma necessária distorção, com a necessária ordem – por mim defendida – de alongamento miofascial global, mobilidade articular e, finalmente, força do centro corporal. O trabalho “clássico” insiste na mobilidade sem alongamento precedente, na força sem relaxamento inicial do corpo, e na realização dos alongamentos no fim do treino com a desculpa patética, acientífica e profundamente ignorante, de que o alongamento deve ser feito a quente, para permitir maior nível de “deformação” e menor nível de lesão. Em artigo que publiquei em tempos em certa revista científica desconstruí o conjunto desses argumentos, tendo desmistificado algumas das premissas que são bebidas compulsiva e acriticamente pelos instrutores de fitness do Sistema moderno.
É necessário acrescentar que, no seio desse mesmo Sistema, é obviamente possível constituir o corpo como um lugar epistemológico preciso. Em Portugal, o nome de Manuel Sérgio está estritamente ligado ao esforço (louvável) de criação do conceito de “epistemologia da motricidade humana”, o qual é indissolúvel, principalmente, das filosofias existencialistas (como a de Merleau-Ponty) e da epistemologia “dos paradigmas” de Kuhn. Este trabalho, que envolve uma intensa pesquisa do foro hermenêutico e literário, releva de um conjunto elaborado de conceptualizações, assim como reinterpretações da filosofia abstractizante.
Mas, é verdade que o próprio Manuel Sérgio refere na “nota prévia” do seu “Filosofia das actividades corporais” (1981) o seguinte: «Progresso desportivo e educação corporal, mesmo que balburdiados pelo servilismo de certa imprensa, podem não significar desenvolvimento humano. Não são fins, são meios. Educação corporal e desporto andam por aí repletos de elementos mágicos e rituais, ao serviço do Sistema Estabelecido. Abdicaram do poder de negação e recusa e deixaram absorver-se, entre exacerbações de nervos, pela comercialidade e pela competição generalizadas. A própria técnica de produção e circulação de mercadorias passou a utilizar-se das Actividades Corporais como estimulantes de consumo. E, por consequência, os seus benefícios mal despontam das sombras magoadas onde as sepultaram.» Ora, não podia ser mais tacitamente dito por este excelso filósofo, defensor da prática desportiva no formato de “ciência da motricidade humana”, aquilo que muito defendo existir no mundo do fitness: industrialização, comercialização, superficialismo da corporeidade objectal. Logo a seguir, no seu texto, Manuel Sérgio utiliza igualmente a referência a Freud, também meu beneplácito referencial, para, depois de referir que as actividades corporais permitem a afirmação sexual do Eu, dizer que «é bem de ver que o processo institucionalizado e partidarizado das competições desportivas e da educação física escolar constitui um princípio repressivo da realidade na qual as Actividades Corporais tropeçam e se extraviam.» Ora, é verdade que Manuel Sérgio realizou, em toda a sua vida, um esforço ambicioso para justificar filosoficamente a realização de “Actividades Corporais”, mas não era com certeza sua intenção justificar aquilo em que essas actividades acabaram por se transformar, principalmente a partir dos anos 90: uma forma de expressão de uma mecanizada “sociedade do hiperconsumo” (Lipovetsky), onde a “rebelião das massas” (Ortega Y Gasset) se faz rica em formas singulares de “negação do eu” identitário (Arno Gruen).
Ora, sublinho a minha concordância em se constituir uma adequada “epistemologia da motricidade humana”. Esta “epistemologia” teria de focar um número incomensurável de temáticas, como a importância de cultivar uma apósita “antropologia filosófica empírica”, baseada na caracterização do ser humano enquanto “ser práxico” (Arnold Gehlen), a sublimidade e natureza polícroma da relação Corpo-Alma-Natureza-Sociedade, a clarificação de certos conceitos hermenêuticos e epistémicos centrais à filosofia do corpo e da corporeidade (o que, no fundo, subentende um revisionismo histórico-filosófico de amplitude colossal), e o tratamento da já antiquíssima questão – dialéctica – do problema mente-corpo (sendo que o paradigma emergente da “motricidade humana” tende a valorizar o monismo ao dualismo e o paradigma do “corpo industrial” tende a valorizar o dualismo ao monismo, por limitar fortemente as possibilidades teóricas de relação psique-corpo), com a necessária inclusão do paradigma neurobiológico (que assume a sua máxima relevância com William James) e a tão necessária resolução da dicotomia “Sou um corpo” vs. “Tenho um corpo”.
Uma epistemologia da motricidade adequadamente completa e coesa teria de incluir vários temas caros à “filosofia do corpo”, desde a dialéctica sensação-pensamento instaurada pelos pré-socráticos, passando pela temática da Verdade, a qual é demarcada com certa pujança pela questão da ignorância socrática e é continuada pela temática da silogística (cara à validade do organon filosófico) e da análise das causas da forma aristotélicas. Por exemplo, a questão da intencionalidade (ou determinação) do movimento está presente na Física de Aristóteles, sendo que a acção (neste contexto, motora) é realizada segundo um conjunto de causas (causa material, causa formal, causa eficiente e causa final) que concebem teleologicamente a forma ou resultado final da mesma (veja-se a semelhança destes conceitos com certos temas ligados à Teoria do Desenvolvimento Motor, a qual está associada a um número incomensurável de autores, extremamente bem sintetizados na obra do psicomotricista Vítor da Fonseca). O contexto historiográfico aristotélico leva-nos, eventualmente, a pensar na filosofia imediatamente posterior, a filosofia helenística, da qual as duas principais escolas, a estóica e a epicurista, nos remetem para a dilemática racionalidade (materialista) vs. afectividade, cara à temática da corporeidade. Por outro lado, apesar de nos tempos romanos (até à constituição de Constantinopla) a corporeidade atingir níveis de expressão considerados imorais até para os tempos modernos, no tempo posterior, a Patrística, a teoria epistemológica do Corpo vai ser perdida para a matéria mais propriamente ontológica; aliás, a teoria filosófica do cristianismo, com base iniciática na apologética da revelação divinal, é muito pouco concretista, impugnando a anima naturaliter christiana do destino face a uma eventual redenção e salvífica cognoscibilidade divina, que é, no fundo o encontro com a beatitude eternal de Deus, o agente supremo da eudemonia cristã. Ao contrário do que tem sido tantas vezes documentado, a Patrística é extremamente rica em visões relativas à substancialidade mais ou menos disjuntiva da relação mente-corpo, tendo sido, de facto, Santo Agostinho o mais sintético dos filósofos cristãos a construir uma visão de hipóstase divina, um tanto platónica (ou neo-platónica) e, portanto, propensa à visão de uma certa inanidade corpórea (permanecendo a grandeza da alma eterna e imortal), que configura a deficiente e anímica determinabilidade quantitativa. O mesmo tipo de incomensurabilidade sistémica de “pensamento” vai ser apanágio da Escolástica, a qual só infantilmente pode ser considerada como representante de um período de obscurantismo na história das Ideias (tal como os humanistas consideraram, de facto, a Idade medieva) – pois, na realidade, a Idade Média vai haurir uma panorâmica extremamente pluralista de pensadores e de áreas genéticas do conhecimento (por exemplo, por volta do século XIII, temos, no mínimo, três correntes: augustinismo, aristotelismo, neoplatonismo), com preocupação especial pela dinâmica estatutária da relação entre Essência e Existência –, e também só ingenuamente pode ser vista como uma época de aceitação acrítica e incondicional do aristotelismo (na realidade, a polémica em torno do pensamento de Aristóteles só viria a findar com a “Summa theologica” de S. Tomás de Aquino); por outro lado, a visão pudica do corpo própria dos tempos medievos, associada ao desenvolvimento modesto das ciências naturais neste espaço de tempo, leva a que a Teoria da Corporeidade não possa deixar de ser considerada como remetida a uma certa vanidade até chegarmos ao Renascimento, o qual marca o açulamento de uma teoria do pensamento moderno. Mas, em termos gerais, podemos dizer que, durante todo o período que vai desde a instauração do império Carolíngio até ao Renascimento, a visão do corpo e da matéria em geral vai ser desapoderada em relação à visão do Espírito, este visto como uma entidade superior. E é indubitável que esta visão dualista do corpo-mente vai ser continuada, de certa maneira, pelos trâmites da filosofia moderna, essencialmente nas mãos dos racionalistas tendencialmente aprioristas – forçosamente representados pelo paradigma cartesiano. Já os empiristas ingleses, influenciados germinalmente pela filosofia nominalista de Ockham, vão ser mais concretistas, e vão, portanto, preocupar-se com a questão da corporeidade e da matéria. Logicamente que, à vista anunciadora do solipsismo de Hume (que tende para um idealismo), o materialismo de Locke (que, muito mais tarde, irá influenciar a filosofia positivista e a psicologia behaviorista) tem muito mais a ver com a “filosofia da corporeidade” do que qualquer outro empirismo “mentalista”. Mais tarde, a julgar pelo nível de obsessionalidade e rigorismo ascético de Kant, não podemos considerar que o seu “construtivismo”, apesar de sincrético, possa ter pontuado por uma visão globalista do corpo. Aliás, Kant é mais propriamente racionalista do que empirista. A visão “globalista” do corpo seria mais claramente influenciada pelas observações e estudos das ciências naturais e pelo afloramento da filosofia contemporânea – esta menos dualista que qualquer uma das mais antigas. Por outro lado, em jeito de nota, os estudos artísticos e anatómicos do Renascimento, desde Leonardo da Vinci até Vesálio, irão constituir verdadeiros prelúdios de uma visão fisicalista global do corpo (incluindo a visão das futuras fisioterapêuticas e mézièristas Cadeias Musculares), sendo que as suas imagens ou desenhos do corpo propõem uma visão que qualquer anatomista moderno – muito “medicalizado” – não poderá jamais compreender. Sabidamente, a visão positivista das coisas irá influenciar a compreensão da ciência, sendo que o paradigma baconiano, propulsionado pelos neopositivistas, é ainda ensinado em muitas escolas e/ou universidades de ciências naturais (aliás, o próprio paradigma mézièrista, assim como a maioria dos métodos fisioterapêuticos, baseiam-se no “princípio da observação”, considerado por muitos cientistas-filósofos como uma forma de “realismo ingénuo”). À indução generalizante contrapõe Popper a visão – mais cuidadosa – de uma dedução particularizante, sendo esta um ícone da ciência “correcta” que deveremos praticar, incluindo as ciências da motricidade e da fisioterapia. Por outro lado, de certo modo a Teoria ou Conceito subjacente ao paradigma mézièrista – à semelhança do que acontece com grandes teorias, como a Psicanálise – não pode ser categorizado num formato propriamente dedutivo e claramente diferente da Observação. Há certas realidades que são de tal forma complexas que não podem deixar de ser vistas numa “Totalidade absurda”, obviamente falível; a falibilidade popperiana, apesar de memorável, não pode ser condição obrigatória de todo o Conhecimento. Há que abrir “excepções” nem que seja porque há aqui certas considerações de ordem semântica que consubstanciam a existência de certos curtos-circuitos; ou seja, a Realidade implexa da Estrutura – seja corpórea, seja mental/emocional – não pode ser reduzida ao método popperiano talvez porque há incompatibilidade (ou incomensurabilidade, na gíria particularmente pertinente de Kuhn) de paradigmas epistemológicos. Portanto, de certa maneira estou de acordo que deverá existir, obviamente com as necessárias limitações, uma adequação entre o Método de análise científica e a natureza do Objecto em análise.
Voltando às questões relativas à filosofia “moderna”, é possível verificar proposições “proto-empiristas” tanto em Francis Bacon, como em Hobbes (para o qual “tudo é corpo, tudo é movimento”), e também em Newton (o qual vai conceber definitivamente a Ciência enquanto método experimental), os quais não podem deixar de influenciar o “materialismo” ou “concretismo” de Locke. A filosofia empirista, ao valorizar o aspecto sensório das coisas, coloca um acento na importância do corpo, um tipo de afloramento negado pela realidade cartesiana. Não deixa de ser injusto considerar o “erro de Descartes” (Damásio) unicamente como erro “cartesiano”, visto que o dualismo mente-corpo constitui matéria de análise de filósofos tão antigos quanto os pré-socráticos, mas, ainda assim, Descartes, ao conceber uma estrutura anatómica que divide o corpo da realidade mental, nomeadamente a glândula pineal, concretiza-se como protagonista da esfera de separatismo entre realidade mental e realidade corpórea. Poderia dizer, ainda, que ao conceber a existência de uma “substância extensa”, Descartes admite que existe uma Realidade exterior e corpórea, o que faz que certos resquícios de empirismo existam nele; por outro lado, jamais vai utilizar um método baseado nas sensações para testar a realidade exterior, sendo que o processo de “construção da realidade” depende de um método científico que não deixa de ser construção cognitiva. O que se torna irónico é que Descartes pretende que com esse mesmo “construtivismo mental” se construa o aparelho dos factos da realidade corpórea, o que significa que, mesmo assumindo que só a mente existe (Cogito ergo sum), Descartes não denega a realidade material das coisas; aliás, o trabalho de construção anatómica de Descartes, o qual exige a utilização da observação como instrumento de estudo, demonstra bem a existência de contradições na realidade cartesiana. O mesmo será dizer que, admitindo que o racionalismo se concebe unicamente na base de uma substância mental proponente do livre arbítrio, então esse mesmo “racionalismo” não é um sinónimo de “dualismo”, mas sim uma resposta possível (mas não perfeita) ao mesmo. Já em Espinosa, o seu racionalismo também não é sinónimo de dualismo. Antes pelo contrário! Para este filósofo, estando a mão de Deus transposta em todas as coisas e não existindo uma ordem divina e espiritual superior, tanto a substância corpórea como a substância mental são sintetizadas numa substância globalista, remanescendo o problema da “substância” e a certeza do “princípio da conservação” (este inerente a um Deus que tudo penetra). É, de certa maneira, parecido com o sistema de “harmonia universal” de Leibniz, o qual não se sabe muito bem até que ponto terá sido influenciado por Espinosa.
Por seu turno, é um erro considerar o empirismo como ícone do “materialismo”, ainda mais porque tanto Berkeley como Hume são tendencialmente solipsistas; aliás, até John Locke não é totalmente concretista, pois, para ele, também existiam as “ideias complexas” e as “qualidades secundárias”. Portanto, os empiristas, de certo modo, desmaterializam o corpo e o movimento, de uma maneira que, face aos conhecimentos científicos actuais, só pode ser considerada radical.
Importante também para uma filosofia do corpo e da motricidade é o conhecimento do pensamento de Lamettrie, o qual reduziu o pensamento aos órgãos corpóreos e considerou o homem como uma “máquina” que apenas se distingue pela multiplicidade das suas funções. E também importante foi Condillac, cuja filosofia é mais “sensualista” do que a do próprio Locke. Também por esta altura se torna relevante a esquematização do início de uma história da neuropsicologia, a qual, em última análise, reduz a actividade mental a um substracto (quando não correspondência) biológico. A partir do início do séc. XIX a biologização da mente assumiria um novo estatuto com o desenvolvimento célere das neurociências, inicialmente concebidas nos termos da frenologia, mais tarde concebida sob os auspícios da teoria da dominância cerebral, ideia que ainda actualmente subsiste entre os mais ignotos, enquanto que os cognitivistas falam sobretudo de “especialização funcional” e de “estruturas cognitivas”.
Enquanto a filosofia da Ilustração influenciaria a revolução francesa, em particular, com a filosofia da “vontade comum”, Rousseau viria a ser um precursor da “consciência colectiva” do romantismo do século XIX. E é precisamente no cerne do Romantismo que o Corpo se reveste de um dos maiores “dogmas do nudismo” que jamais se conheceram. O corpo iria ser tapado, pintado, transfigurado nos tempos do romantismo de uma forma que só pode ser comparada ao contraposto desnudamento dos tempos modernos.
A par dos tempos do liberalismo-romantismo, a revolução industrial irá impor a modificação radical dos acontecimentos somato-culturais, levando à criação de um “corpo moderno”, sendo que o mesmo se irá constituir como “máquina” capaz de urdir as necessidades do Sistema. Aqui a epistemologia da motricidade esbarra com a temática da historicidade do corpo e corporeidade. No respeitante a factos históricos da modernidade, é pertinente dizer que foi justamente através do artesanato doméstico, que envolve um corpo que tece, que se iniciou a transformação dos processos produtivos, isto na Inglaterra do séc. XVIII. Portanto, o homem antigo de “trabalho” (homo laborens), que estava em inter-relação com os outros, com os objectos e a natureza, vai transformar-se progressivamente no homem que fabrica (homo faber), que age sobre os outros, sobre os objectos e sobre a natureza. Estes mesmos termos foram criados por Hannah Arendt, filósofa importante na criação de uma consciência ligada à filosofia política e das produções industriais. Ora, a industrialização capitalista, que se inicia em finais do século XVIII, vai levar a uma transformação radical do viver humano, construindo uma sucessão de “corpos construídos para o trabalho”, cujo funcionamento é adstrito a um controlo feérico do tempo e das actividades produtivas. O corpo “moderno” é um corpo desterritualizado, descontextualizado das raízes e da natureza, submergido num conjunto de imposições maquinais próprias do mundo urbano. Aliás, o corpo do século XIX é um “corpo-máquina”, vítima da neurastenia e da domação hipermoral e supergóica (numa linguagem psicanalítica), disciplinado até ao ponto da máxima fadiga psicofísica, um corpo com medo da docilidade e do prazer. Cria-se, portanto, um corpo alienado, feito para servir os interesses de uma máquina produtiva sem dó nem piedade. Temos, aqui, o corpo “moderno”, correspondente ao homo motor, o qual é visto como um invólucro de conservação de energia e de conversão e propulsão. Neste contexto, que ainda perdura em muitas empresas nacionais, a educação física e a ergonomia eram claramente um meio de manter a capacidade de “aptidão máxima” da máquina. O Fitness é ainda vítima deste contexto de um corpo como objecto de produção. E os seus múltiplos estudos “funcionais”, os quais garantem a proficuidade da “ginástica”, caucionam a saúde e, de forma menos consciente, o funcionamento de uma máquina industrial. Esta, obviamente, começa a atribuir um status único (e hipócrita) a indústrias específicas como os ginásios, os centros de Estética, os salões de beleza, os spas, as boutiques, e até mesmo os hospitais e as clínicas. Portanto, o corpo moderno é um corpo de produção, em que o Belo se afigura como forte. Mas não é bem o mesmo tipo de corpo que se pode caracterizar como “pós-moderno”.
O corpo pós-moderno é diferente, no sentido em que é um corpo submetido às indústrias referidas, pelo mero motivo de que a Beleza, e não tanto a boa forma produtiva, se apresenta como critério decisivo do sucesso financeiro. Este sucesso não corresponde tanto a uma máquina, visto que, em pleno século XX e XXI, as profissões liberais abundam com incomensurabilidade. O corpo da “pós-modernidade” é o corpo da Felicidade, o corpo que regride à substância infra-racional do prazer. É, no fim de contas, um corpo que denega qualquer epistemologia construtiva. Aqui, mais do que nunca, os esforços da “epistemologia da motricidade” enquanto paradigma emergente (Manuel Sérgio) esbarram na realidade de um corpo subvertido à alienação, um corpo comandado pela Ilusão, o efémero, e influenciado pelo poder do marketing, da publicidade e dos média em geral. O corpo pós-moderno é um corpo anti-filosófico, no sentido em que somente o corpo expressivo é um corpo reflexivo. É um corpo sem autonomia, pois esta é comandada pelo poder de uma sociedade de consumo estético. É um corpo “fast-food”, plastificado, artificializado, destituído de uma história ou de uma conteudística. É, segundo Donna Haraway, um corpo cyborg, o qual encarna (ou incarna?...) a própria tecnologia. Aqui, a “indústria financeira” adstrita ao sistema marxista não interessa tanto quanto o conceito, já tratado, de “indústria cultural”, introduzido pelos pós-marxistas Adorno e Horkheimer. Pois o corpo não é tanto a máquina para a indústria, mas sim a máquina “indústria ela mesma”. E aqui é especialmente relevante o poder da massificação, da alienação publicitária e de todos esses ícones imagéticos que o mundo (pós)moderno já (alienadamente) integrou.
A par da teoria do conhecimento, a Ética – e em especial a Bioética – permitiram uma visão globalista do corpo, a qual compete fatidicamente com a visão de um Corpo destituído das suas virtudes, e confinado à máquina opressora do Industrialismo (enquanto substância quimérica). Assim sendo, a área epistemológica do pensamento da corporeidade envolve obrigatoriamente o pensamento ético, o qual não pode deixar de enfocar matérias tão importantes, e muitas vezes esquecidas, como o Utilitarismo, conceito relevante para a compreensão do fenómeno contemporâneo da “cultura de massas”, e o conjunto dos problemas que a Ciência moderna, incluindo a engenharia genética e a medicina estética, têm trazido enquanto questões muitas vezes aporéticas. Assim sendo, nos tempos que correm, a epistemologia da motricidade compõe um terreno temático específico da Bioética.
Voltando ao paradigma propriamente epistemológico, Manuel Sérgio, no contexto nacional, faz uso de um número desmedido de filósofos, principalmente de existencialistas e de fenomenologistas, incluindo o contemporâneo e relevantíssimo Paul Ricoeur. Não é minha intenção tentar redefinir a filosofia do corpo. E muito menos de repetir o que tem sido dito tantas e tantas vezes. E também não é, nem nunca foi, minha intenção negar a realidade de penetrabilidade corpo-mente tão bem caracterizada por um imenso manancial de pensadores (se quisesse negar a natureza indissolúvel da relação mente-corpo bastaria fazer uso do número incontável de filósofos dualistas da história da filosofia ocidental – muitos deles citados anteriormente neste texto –, desde os pré-socráticos e Platão – este último a ver o corpo enquanto cativeiro da alma “tripartida”, a qual estaria mais próxima da sua raiz demiúrgica e do mundo do pensamento do que da realidade concreta e sensitiva das aparências –, a Karl Popper – este teorizando a existência de “três mundos”, sendo que os primeiros dois estabelecem a distinção entre realidade concreta e realidade mental intra-individual –, passando pelo incontornável Descartes; por outro lado, Aristóteles concebe uma forma de impartibilidade entre corpo e mente, remetendo-os para uma “unidade metafísica indivisa”, a qual nega a visão platónica). Perante uma realidade tão prolixa de filósofos, com tantas e tão díspares teorias do um mundo, é sempre possível justificar epistemologicamente – não num sentido especificamente gnoseológico, mas mais num sentido abertamente hermenêutico – qualquer tipo de argumento, a não ser que o mesmo viole as regras fundamentais do silogismo retórico e/ou os princípios mais preliminares da Ética axiomática. O cerne da minha trama “epistemológica” consiste somente no acrescento de um novo “capítulo” à “filosofia da motricidade”, nomeadamente o capítulo relativo à utilização do corpo enquanto “objecto industrial”, epifenómeno ultramoderno, diferente da utilização do corpo feita ao longo da história do Homem, porque própria de um tempo muito mais recente, iniciado de certa forma com o Maio de 68 e ganhando um novo eco com a “massificação dos anos 90”. Esta filosofia inovadora pode e deve fazer uso de muitos filósofos, incluindo muitos dos já citados e que têm reflectido a realidade do ultramodernismo caótico, a sociedade de marcas e a cultura de massas. Esta última – a cultura mediática e massificada – é de importância extrema, não sendo, nos tempos que correm, jamais suficiente a crítica – cada vez mais imanescente, cada vez menos explícita – à Comunicação Social e a todos os órgãos que constróem a Verdade com base – não na verdadeira realidade, que vamos presumir que existe – mas sim numa “realidade” que é função da vontade de consumo cultural das maiorias que consubstanciam o público pagador. É certo que a Verdade não tem nada a ver com o que a Maioria prefere ver nos escaparates da mediania. Também é certo que, com uso e abuso de argumentos de pós-modernistas, não sabemos muito bem o que é a verdade. Mas, não tenho dúvidas de que, tal como Karl Popper tão bem explicitou, uns sujeitos possuem a Verdade mais próxima de si do que outros sujeitos; e quase sempre a Verdade está nas mãos de uma minoria, pois só um conjunto muito reduzido de sujeitos possui as “variáveis de vida” (sobretudo culturais) necessárias para realizar o esforço cerebral – que nega o “princípio do prazer” no “aqui e agora” – de aquisição de conhecimento e luta contra a entropia mental para que todos tendemos. A (pós)modernidade, segundo Walter Benjamin, consubstancia esse dado esforço da racionalidade.
No seio de uma tentativa de definição da entidade corporal poderia aconselhar a leitura da obra de José Gil “Metamorfoses do corpo”, na qual descubro quase tarde demais a seguinte citação que tão bem se adequa a este ensaio: «Assiste-se actualmente, depois do esforço psicanalítico, a uma verdadeira invasão do culto do corpo – visível, sobretudo através das dezenas de métodos terapêuticos que florescem nos Estados Unidos. Pretende-se fazer falar o corpo, descobre-se a propósito de tudo e de nada “um discurso do corpo”, pretende-se que ele se liberte ou se exprima. Como se o objectivo fosse, neste momento, descobrir uma língua do corpo à qual se subordinaria qualquer terapia ou outra forma de linguagem: artística, literária, teatral ou simplesmente comunitária. Muito estranhamente, na mesma altura em que esta voga testemunha uma sensibilização crescente pelos problemas do corpo tendente a afirmar a sua importância nos mais diversos domínios, retomam-se velhas ideias, velhos esquemas – idênticos aos regimes de signos que serviram para a exploração do corpo: este tornou-se o significante despótico que resolverá tudo, desde o declínio da cultura ocidental até aos menores conflitos intra-individuais. Uma tal concepção seria inofensiva se não fizesse passar o corpo por o significante supremo que, recobrindo um vazio, faz as vezes de tudo aquilo de que os nossos corpos foram desapossados – pelo menos desde a desagregação das culturais arcaicas. Que corpo é este, em volta do qual se agitam estas terapias? Uma análise superficial revelaria neste campo uma maneira de fazer violência aos corpos – tomando, às vezes, as formas mais nuas de cinismo mercantil.» Este mesmo “cinismo mercantil” é maior agora do que alguma vez se constituiu, apesar de os médicos de Molière possuírem uma forma de “cinismo” relativamente semelhável; é bem notório que o “objecto corporal” sofre uma distorção maior agora do que em qualquer outro tempo, pois, se, por um lado, já não existe a “negação do corpo e da nudez” a que se assistiu durante milénios na história do Homem, por outro lado, a lógica de aceitação da nudez e da parte invisível do iceberg corpóreo, propiciada pela psicanálise (muito sofregamente por Melanie Klein), tem sido gorada pelas práticas esteticistas e desportivas contemporâneas. E é aqui que reside a nossa grande problemática. É que, segundo uma boa parte dos terapeutas e dos instrutores de fitness, a sua prática aumentará a “consciência corporal” e, portanto, a consciência do Eu. Mas, na realidade, estando a sua prática nefastamente submergida na lógica de uma máquina mercantilista, feita de puro espectro, o resultado de tantas técnicas e desportos é o oposto ao do “auto-conhecimento” (prometido e propugnado). Isto é o mesmo que dizer que estas indústrias do corpo conformam-se a um tipo de “medicina” corrupta que corrói os mais profundos centros da consciência humana; nesse sentido, o Wellness e o Fitness são mais um “ópio do povo”. E é impossível presumir que uma forma de ópio, criminosamente disfarçada de “consciência corporal”, possa resultar na condução do homem à saúde (a qual, como já vimos, não significa necessariamente a “perfectibilidade”).
Assim sendo, o conceito de “paradigma emergente da motricidade humana” (Manuel Sérgio) só faz sentido para o conjunto das actividades mais lúdicas e psicofísicas, como é o caso da dança, da psicomotricidade e da relaxação psicossomática, não possuindo grande “suporte” para actividades ditas “olímpicas”. Em particular, como já disse, defendo que a “motricidade” deve ser revista nos termos dos métodos de “inibição tónica” e “facilitação funcional” propugnados por certos métodos de fisioterapia de intervenção postural e neurológica; métodos flagrantemente esquecidos e comummente lançados para segundo plano pelos próprios profissionais da área. O desporto está, portanto, dependente de, não só de uma nova epistemologia, como de uma revolução metodológica, a qual atribui ao alongamento um papel capital, e que advoga a incomensurável excelência de um trabalho individualizado, centrado nos problemas e especificidade do utente-doente. Tal “revolução metodológica” pode ou não vir a realizar-se, mas, acarretando necessariamente uma grande mudança de “paradigma cultural”, demorará décadas a ser aceite.
A nova metodologia do exercício físico que proponho dá às actividades ditas “doces” uma prioridade essencial. Certos modelos de trabalho terapêutico mais globais, como o rolfing no contexto da osteopatia anglo-saxónica, e os métodos de Reeducação Postural do tipo mézièrista (baseados na realização de posturas de alongamento global da musculatura tónica, sabidamente sempre em tensão, e no trabalho de força da musculatura fásica ou dinâmica), ajudam a propugnar um modelo de trabalho físico consideravelmente diferente daquele que é realizado no dia a dia nos ginásios de fitness. Se estes mesmos ginásios – mesmo a par da realização de actividades como o Pilates ou o Yoga – usam e abusam de actividades que fazem uso da “força muscular”, sem respeito pela natureza – fundamental – do equilíbrio entre os diferentes grupos musculares (que devem ser vistos como “cadeias musculares”), então é indubitável que os desportos “modernos”, incluindo aqueles de carácter assimétrico, alimentam a tensão, contribuindo, de forma bastante mais que virtual, para o acréscimo do nível de deformidade postural e, portanto, para o aumento do conjunto numérico de perturbações músculo-esqueléticas, incluindo os traumas e as lesões dos tecidos moles (num curto ou médio prazo) e o aparecimento de doenças de carácter reumatológico (mais no longo prazo, dito estrutural). Uma prática gímnica que se preocupa com o Belo, sendo este Belo sinónimo de musculosidade e não de Postura (reflexa) do corpo, é claramente um apanágio da pós-modernidade.
É importante estabelecer, neste ponto, que todo o conceito por mim propugnado nas últimas páginas, a que, em tempos, denominei de Anti-fitness, não se resolve com a ablação da prática de exercício físico. Não sou, ao contrário do que muitos me acusam, contra a realização de actividade física. Sou somente contra o paradigma presente da actividade física dita “moderna” (ou pós-moderna), pois considero que o mesmo, a par dos seus potenciais malefícios para a saúde humana, e acrescentando o provável desconhecimento desses malefícios por parte dos praticantes de exercício físico, não se coaduna com os mais elementares preceitos da Ética. Ou seja, considero efectivamente que a prática do fitness tal como é preconizada na realidade moderna dos ginásios e academias é, não só imoral, como totalmente criminosa. E esta mesma realidade hermenêutico-fenoménica pode e deve ser estendida ao contexto do “exercício físico” enquanto sucedâneo e arquétipo de uma sociedade em que o Capitalismo se instalou como uma carraça (devemos ter em conta que o meu conceito de Anti-fitness inclui esta realidade, ultrapassando portanto o contexto do conceito de antiginástica da fisioterapeuta mézièrista francesa Thérèse Bertherat). Portanto, o meu conceito de Anti-fitness inclui dois horizontes: um horizonte mais propriamente fisioterapêutico (aquele que advoga a perniciosidade das práticas modernas) e um horizonte mais propriamente epistemológico (aquele que se refere à perniciosidade psico-cultural das mesmas práticas, vistas como elemento de uma desagregação do Eu). Dentro do horizonte epistemológico, podemos dividir entre a corporeidade enquanto fenómeno próprio das indústrias cultuais ou enquanto “corpus” ideal, próprio do Eu e da sua complexa subjectividade.
Importa acrescentar só mais um ponto relativamente às actividades de fitness. Foi nos termos da necessidade de criação de uma “outra realidade no desporto” que certas actividades como o Pilates, o Yoga e o Tai-chi foram incluídos no manancial de “desportos de estúdio”. Considero que estas actividades não definem uma porta de entrada na “salvação do fitness”. Antes pelo contrário! Ao “venderem” a ideia de que estas são actividades verdadeiramente “holísticas” (palavra, aliás, completamente inflaccionada), tem-se criado a ideia – falaciosa – de que reside nestas práticas uma fonte de “psicologismo salvífico”, o que não pode deixar de ser visto como pura ilusão. E é neste mesmo tipo de “purga publicitária” que consubstancio algumas das críticas “capitalistas” e de “marketing nocivo” ao fitness, de resto já apresentadas anteriormente. No ponto de vista estritamente técnico/terapêutico, estas mesmas actividades não se apresentam como a prometida “panaceia”; aliás, todas elas vendem uma ideia – totalmente superficial – de Postura e Intervenção Postural. O que não deixa de ser triste, pois já devia estar bem explícito que o trabalho postural deve, não só respeitar a “teoria das Cadeias musculares” (que, definitivamente, não é respeitada por nenhuma daquelas práticas), como deve auferir da necessária “individualização clínica” (a qual, tirando os casos de personal training, não está de todo presente no trabalho de estúdio). Neste ponto, gostaria de dizer que, a par do que já citei sobre a necessidade de revolução na metodologia de treino, defendo a introdução – perfeitamente pertinente – de fisioterapeutas no mundo do fitness. Portanto, trata-se não da extirpação do mundo do fitness mas sim da sua mudança – prenhe de alguma radicalidade – no sentido da introdução de profissionais com um tipo de “visão” mais “clínica” e “individuada” do treino e do utente-doente. Tendo em conta a preparação bastante prolífica dos fisioterapeutas nas temáticas da “motricidade” – aliás, ao contrário do que muitos pensam, a fisioterapia é essencialmente exercício físico – considero que estes profissionais se encontram perfeitamente preparados para entrar no mundo do “condicionamento físico”. E, para mais, este mesmo “condicionamento físico” deve passar a ser visto essencialmente como sinónimo de saúde e não como sinónimo de “potência física” (ao serviço de um Sistema). Aqui, sim, o exercício físico tornava-se apanágio de Saúde humana, e os profissionais do fitness passariam a ser aquilo que tanto desejam ser – profissionais de saúde. Esta “introdução” dos fisioterapeutas no mundo do “desporto” poderia contribuir em muito para a verdadeira “emergência do paradigma da motricidade humana”, tal como alicerçada por Manuel Sérgio. Claro que, neste contexto, defendo igualmente a introdução, no mercado do desporto, de profissionais da motricidade como os psicomotricistas, os educadores físicos e da motricidade, os técnicos superiores de “Exercício e Saúde”, os técnicos de reabilitação psicomotora, entre outros, se munidos de uma adequada preparação “clínica” (para além de uma necessária consciência ética). Só a partir do momento em que o Desporto perder o modelo de “corpo industrial” para passar a arraigar o modelo de “corpo (morfo)analítico” ou “corpo (verdadeiramente) holístico” é que fará sentido falar da Actividade Física como sinónimo de Saúde, pelo menos se virmos a saúde como sinónimo de subtilizado “longo prazo estrutural” e não tanto como sinónimo de “curto prazo funcional/nosológico” ou de “corpo biomédico/biomecânico”.
Importante será igualmente falar deste modelo “biomecânico” do corpo. Este é, na realidade, um modelo anquilosado, profundamente conservador, relacionado com a lógica do estabelecimento de fronteiras e/ou limites de identidade nosológica. É um modelo poderosamente “biomédico”, também no sentido profissional e formal do termo, visto que é a profissão médica – entre outras de alguma formalidade histórica e burocrática – que contribuiu para uma visão do corpo extremamente estatista, pouco depurada nas suas sempre espúrias vertentes funcionais. É bem certo que qualquer tentativa de estabelecer “tipos” corporais, assim como estratificações nosológicas em formato de denominações clínico-patológicas, resulta na ostracização do conceito de Saúde Global. O holismo não é só a visão bio-psico-social do corpo e do homem. Trata-se de ver todas as fronteiras, principalmente aquelas que derivam de rótulos de diagnóstico médico, assumirem a sua verdadeira estrutura arquetípica que é a de “convenções”, “nomes”, “identidades”, que não deixam de ser rígidas e artificiais. Persistimos em ver o que fomos educados para ver. E a educação – centrada nas necessidades de uma maioria utilitarista e sócio-funcional (Durckeim) – está rigidamente estruturada sobre um conjunto de alicerces fronteiriços tenazmente definidos, numa lógica do “limite” segundo o “tudo ou nada”. Esta visão “biomecânica” do corpo também está assaz coerentemente incluída na tal sociedade de índole “capitalista”.
Defendo, portanto, uma visão “funcionalista” do corpo, não enquanto receptáculo de funções orgânicas, mas sim enquanto Estrutura cujas fronteiras são meras aparências, tanto no espaço quanto no tempo, e cujo funcionamento global, incluindo a dinâmica postural, se move por um conjunto de limites difíceis de definir, e, portanto, criadores de uma necessária angústia. Neste contexto, toda a necessidade de estabelecer “fronteiras” ou “categorias” não passa de mera convenção, uma dejecção da mente humana sempre frágil, e cuja sanidade está dependente da partidarização ou compartimentação da realidade. Não esqueçamos, portanto, que a percepção é feita num todo, e que o corpo só pode ser visto enquanto “Corpus” com a necessária aceitação de um poderoso e gigantesco insight, um verdadeiro Eureka gestáltico. Sob os escaparates de tal “percepção”, sob a base de tal fenomenologia, toda a necessidade de “categorização” de funções e/ou patologias torna-se um verdadeiro absurdo. O verdadeiro terapeuta deve, então, ver o todo e não um mero rótulo; e tal como a psicanálise perspectiva a personalidade humana também o trabalho “fisioterapêutico” deverá perspectivar – sob a égide de um concorde esforço morfoanalítico – a “personalidade corpórea”. E tal poderá ser conseguido muito mais facilmente se, ao invés de se perder tanto tempo com o estudo dos manuais de fisiopatologia, se dedicar uma pequena percentagem do nosso tempo à contemplação da Vénus de Milo ou da “alegoria da caverna” de Platão.
Temos, concluindo, que o corpo humano parece estar a ser consumido pela cultura “deslumbrante”, extática e dierética do “kitsch”. O corpo, essa matéria tão frágil e tão “humana”, parece estar a ser desvirtuado, simplificado, desmemoriado e “desconstruído” pelo poder de uma indústria sem limites, pelo poder de uma Imagem... imagem falsa ou aporética de uma realidade tornada pseudo-realidade ou mesmo teurgia. Nesta pseudo-realidade, tornada real a tantos olhos, o corpo e a mente passam a ser urdidos de uma forma carnal, mas não menos solipsista e farsista. Esta realidade constitui o palco de mitos e ilusões publicitárias, ícones de uma sociedade alienada, acrítica e doente. Como proceder para evitar isto? Como obrigar as pessoas a tomarem consciência da verdadeira realidade? E como havemos de proceder para proteger as pessoas da sua própria ignorância?...
Na realidade, a questão da ignomínia ou alienação social relativamente ao papel que o “corpo” possui na sociedade é de importância de tal forma cabal que não podemos passar por cima da mesma. De facto, a ignorância abunda nos termos de certas práticas higiénicas e sacrificiais do corpo. Não me assustam tanto todos aqueles que, portando uma consciência minimamente aprimorada da realidade em análise (o que pressupõe um certo nível de abstracção relativamente a uma realidade predominantemente concreta e pragmática), se deixam “levar” pelo prazer substanciado pelas técnicas que identifiquei como “indústrias culturais”. Todos são livres de poderem ser seduzidos pelo escapismo, assim como todos são livres de serem conscientemente enganados e todos são livres para poderem destruir o corpo com práticas desportivas de impacto deletério. A questão da nesciência envolvida no seio dessas práticas respeita sobretudo a todos aqueles que acreditam piamente que as indústrias culturais por mim identificadas promovem a saúde, se por “saúde” nos referirmos a um verdadeiro estado de potência “erótica” que permite uma luta prolongada contra a entropia do corpo e do meio onde este se move. A questão respeita, portanto, a todos aqueles que não possuem o dom ou vontade de consciencialização, o que pressupõe que estes mesmos indivíduos não se encontram suficientemente seguros ou “a salvo” de certas indústrias, o que, em última análise, torna estes mesmos sujeitos “actores sociais” sem liberdade de escolha. Pois, como sabemos, a verdadeira liberdade (se é que tal existe...) pressupõe a consciência, o conhecimento de causa. E o livre arbítrio será tanto mais “livre” quanto maior o nível de profundidade de conhecimento relativamente aos “meios” mais agressivos.
Visto que os elementos de uma sociedade democrática deverão ser livres e, portanto, conscientes do conjunto das mundividências que matizam o seu “ciclo vital” (Lewin), considero fulcral que os “actores sociais” possam ser adequada e imparcialmente informados, o que inclui a evicção, ou mesmo absoluta proibição, de todo o acto promotor e publicitário de práticas potencialmente deletérias. Daí que a urgência de divulgação do produto de uma indústria deverá – ou deveria – ser controlado por uma justa máquina de frenagem informacional e/ou cultural (haja um órgão – ético – regulador da publicidade!). Não se trata obviamente de censura. Trata-se, sim, de tentar moderar os anúncios do exercício físico ou dos spas, ou, para utilizar um exemplo mais óbvio, de tentar fazer medrar anúncios a fast-food, sabidamente perniciosa para a saúde. Daqui sai uma temática com a qual me sinto muito familiarizado. Até que ponto devemos permitir, em nome da liberdade de expressão, a consubstanciação de anúncios publicitários relativos a produtos que são potencial ou concretamente prejudiciais para a saúde humana?... É um assunto para desenvolver em sítio mais propício. Mas de uma coisa eu sei. A ignorância, assim como a alienação, é, de facto, um crime em desfavor da defesa da própria saúde – tanto mental quanto física.