quarta-feira, março 25, 2009

Man's Posture. Electromyographic Studies

É o título de uma obra de referência (1960, de J. Joseph), uma monografia sobre o funcionamento da musculatura postural, sobre a electromiografia e sobre os dados que esta forma de medição nos trazem para a temática da Reeducação Postural.
Efectivamente, se a temática do método Mézières, e dos restantes métodos reeducativos, se baseia em axiomas ou a prioris científicos, a electromiografia representa aqui um papel de relevo absoluto.
Classicamente, considera-se que existe algo chamado "tónus muscular", músculos de nome "posturais", e um comportamento que diferencia músculos de dissemelhantes naturezas. A obra em questão dá luz a uma controvérsia antiga: será lícito denominar o "tónus muscular" de "contracção muscular em repouso". Seria lícito fazê-lo se efectivamente os músculos possuíssem todos algum género de actividade neuromuscular remanescente em repouso. Mas o que os estudos e medições electromiográficas vêm demonstrar é que certos músculos, nomeadamente os de natureza fásica e/ou dinâmica, podem chegar ao estado de absoluto repouso (o que, experimentalmente, corresponde à ausência de traçado electromiográfico). O que leva a concluir que o "tónus" deve ser visto mais como o "tipo de resistência que o músculo possui ao alongamento ou mobilização passiva" do que como "contracção em repouso".
Os músculos de natureza fásica podem, efectivamente, alcançar o zero electromiográfico (claro, em condições de ausência de lesão neurológica central). E, de tal forma esta ideia alcançou os cânones do "revolucionário", que depressa se pensou que também os músculos tónicos - sabidamente de tensão constante... e de difícil redução - podiam chegar ao zero electromiográfico em condições de absoluto repouso. Ora, efectivamente, vários estudos demonstraram que o zero electromiográfico é passível de existir nos músculos tónicos. E o que é mais incrível é que essa ausência de actividade neuromuscular dos músculos tónicos está presente também na posição de pé. Ora, não é suposto, por exemplo, os músculos posteriores da coluna estarem em tensão na posição de pé, permitindo a actividade anti-gravítica? Ora, segundo estes estudos, demonstra-se que, afinal, a actividade desses músculos na posição de pé, é mínima. Por outro lado, estudos em que foram utilizados aparelhos de electromiografia mais sensíveis demonstraram que, afinal de contas, os músculos tónicos apresentam um certo nível de actividade, mesmo em repouso... Porém, esse nível de actividade é fundamentalmente expontâneo e pouco expressivo. Os músculos tónicos, científica e garantidamente, trabalham menos do que se pensava para a manutenção da posição de pé. Mas tal só se verifica nas condições de equilíbrio muscular. Ou seja, no caso de existirem desequilíbrios musculares, que podem ou não ser entendidos como deformidades posturais, há já uma grande actividade tónica da parte dos músculos tónicos e/ou anti-gravíticos. O que isto demonstra é que, nas condições normais de postura "equilibrada", a actividade electromiográfica dos músculos tónicos é pequena, sendo mesmo nula em alguns músculos. Só nas condições de desequilíbrio postural é que se verifica um acréscimo de actividade neuromuscular. Ora, então, mais uma vez, se volta à questão do tratamento das deformidades e das patologias neurológicas e reumatológicas em geral: vale a pena fortalecer músculos para tratar desequilíbrios tónico-posturais? Ora, se esses mesmos músculos estão em "excesso" quando há desequilíbrio e mais ou menos inibidos quando há equilíbrio, não passará o tratamento e a fisioterapia em geral pela necessidade de inibição tónica (conseguida por meio de relaxamento, alongamento e outras técnicas de inibição neuromuscular)?... A resposta parece ser óbvia, pois, efectivamente, os tais "problemas de coluna" surgem em indivíduos cujos músculos posturais estão seguramente em excesso, e não fracos, como se pensava!
Falta referir algo: se a posição de pé está muito menos dependente da actividade tónica dos músculos anti-gravíticos do que se pensava, o que é que mantém a posição ortostática? Segundo os vários estudos consultados na obra em análise, a estabilidade em pé depende de: contracção de músculos das pernas (principalmente o solhar), o trabalho dos ligamentos dos joelhos e ancas e a contracção de alguns (somente alguns) músculos da coluna, como os músculos sacro-espinhais. O contributo dos ísquio-tibiais, de muitos outros músculos da coluna e até dos abdominais é muito menor do que aquilo que geralmente se considera. É de sublinhar a importância, para a manutenção da posição de pé, de estruturas fasciais não activas, como ligamentos de certas articulações. (Mas todos estes dados dizem respeito às condições definidas de "média da normalidade"; por exemplo, em certos casos de deformidade, os ísquio-tibiais possuem já grande tensão).
Estas informações estão consubstanciadas pela obra referida, a qual, apesar de antiga, fornece dados únicos, baseados em centenas de estudos. A obra "Man's Posture. Eletromyographic studies", pela natureza (positivista) das medições em que se baseia, mantém toda a sua actualidade, sendo um clássico importantíssimo para a Fisioterapia em geral, dando razão à minoria dos fisioterapeutas de Reeducação Postural e colocando em relevo os dados obtidos e defendidos em tantos outros estudos, os quais, apesar de mais actuais, não possuem a mesma integridade metodológica obtida com a mera observação de medidas electromiográficas.
Termino dizendo que a obra só é obtível pela Internet, tendo demorado um mês a chegar às minhas mãos. Finalmente, devo dizer que quando a empresa de investigação PLUX me convidou para conceber Guidelines de investigação com electromiografia de superfície em Reeducação Postural coloquei logo um problema, e esse problema é bem real: efectivamente, é impossível conceber planos de trabalho ou de investigação em Reeducação Postural com electromiografia de superfície. Para esse tipo de investigação são necessários aparelhos sofisticados de electromiografia de profundidade, sensíveis às mais pequenas variações de actividade neuromuscular desses músculos, as quais são, na realidade, pequenas, se estão mantidas as condições de postura "normal" e "equilibrada".

sábado, março 14, 2009

Objectividade relacional terapêutica

Recentemente, algures no final do ano passado, criei uma relação terapêutica com uma doente de 92 anos, em regime de domicílio. Fisicamente a doente tende a apresentar algumas complicações respiratórias esporádicas, atroses nas extremidades dos membros e nos joelhos. Mas, a par da minha tendência cada vez mais inevitável para me entregar ao carácter relacional e "romântico" da Fisioterapia, não é de ciência casuística que pretendo falar, mas sim sobre algo que diz respeito à minha doente e à questão da objectividade da relação terapêutica.
Enquanto intelectual que sempre fui e me considero, sou inalienavelmente interessado pelas Letras e as Artes, e possuo uma admiração intrínseca por quem dedica ou dedicou a vida ao despertar, sempre constante, dos grandes Sistemas da intelectualidade humana e do conhecimento. Aliás, o conhecimento e a intelecção são tão importantes para mim que até considero que a educação - e o seu indissolúvel "eduquês" - está, ao cair em métodos de ensino de carácter fundamentalmente psicologista (e algo infantil), a expropriar-se da matéria mais nua e bela da própria conteudística do Saber.
Tenho, portanto, uma grande admiração pelo Saber e por todos quantos extrapolam o mesmo em si e nos outros. Claro que a cisão muitas vezes realizada entre razão e coração não deixa de ser totalmente virtual, ao serviço de uma mera conventualidade. Pois, na realidade, razão e coração estão unidos no mesmo "corpus" sintético, o qual enquadra a existência de uma Realidade única em que Corpo e Mente pertencem ao mesmo teatro emocional, o qual consubstancia, num nível superior (e estritamente humano), o "sentimento de si" (Damásio).
Voltando à questão da minha doente... Ela tem realmente 92 anos mas é provavelmente mais lúcida e sabedora do que a maioria dos idosos de sessenta ou setenta anos do nosso país. Não há, na realidade, qualquer traço de demência ou depressividade naquela senhora. E, no aprofundamento da nossa relação terapêutica, fui ouvindo muitas histórias acerca da sua vida - desde a flagrância de um pai culto e metódico até à aceitação de uma mãe algo sistemática, passando pelo convívio com os filhos de Américo Tomás, pela aproximação a Salazar, e pelo diálogo estabelecido com Salvador Dali e vários escritores e músicos portugueses - sempre muito atento à unidade algo feérica da sua vida tão cheia. A minha doente foi, para dizer o essencial, leitora, estudante de cinco cursos superiores, aluna da Sorbonne, estudiosa de literatura e música, cantora de ópera, pianista, professora de música, crítica musical e directora do Conservatório Nacional. Para além disso sabe seis ou sete línguas com uma fluência algo invejável. Não é portanto uma pessoa qualquer. E não resisto a dizer, não necessariamente pela sua grandeza intelectual (e muito menos por quaisquer condições de ordem financeira), mas mais pela sua grandeza moral e emocional, que esta minha doente possui quase um "estatuto" superior à maioria dos doentes com que lido no dia a dia. Pois, não obstante a sua grande intelectualidade, esta senhora não é menos íntegra do que é culta e vivida. Quase nunca a vi deprimida. Está sempre muito optimista. Possui uma visão justa da vida. Certo dia terá até entregue grande parte dos seus livros - muitos deles preciosidades - a uma biblioteca, sem sequer deixar escrito - e imortalizado - o nome de quem os oferecia. Entrega roupa aos pobres e contribui para a protecção dos animais. Enquanto professora nunca levantou a voz a um aluno. Tratou-os sempre de igual maneira, independentemente do estatuto moral e/ou pecuniário dos mesmos. Teve sempre uma criada que tolerou ao longo da vida. Agora, demente (a criada), quando todos tentavam convencê-la a colocar a criada num lar, ela recusou-se e manteve a criada em sua casa. E, apesar da idade avançada da minha doente, ela não deixa de viver e ter uma atitude crítica sobre o presente, para além de ter consciência de que muita coisa lhe falta fazer.
Decerto muitos pensarão que me terei deixado seduzir pela doente. Talvez tenha acontecido, dada a sua inalienável riqueza interior. Mas, bem certo das minhas intuições, nunca questionei a veracidade das suas histórias, assim como posso dizer que a sua intelectualidade é assaz genuína e algo capaz de provocar uma certa sensaboria.
Perante tal quadro de cultura, e não desolvidando a sua riqueza heurística, fui tratando a minha doente ao longo de meses, tendo-se tornado a minha doente mais amada e fiel. Portanto, admito que passei a "amá-la" de um modo muito superior a muitos outros doentes.
Se, pelo facto de nunca ter casado e tido filhos, podemos questionar a natureza libidinal desta senhora, eu não duvido da sua feminilidade, e, mesmo que se pudesse duvidar, tal não interessa à grandeza da sua obra. Os seus filhos são todos os seus alunos e amigos, que a visitam diariamente e a surpreendem na sua lealdade. Da minha parte, também não duvido da minha integridade de jovem masculino, sendo que a minha admiração é puramente conceptual - e, também, algo emocional - não estando a fazer desta senhora uma bebé de quem cuido ou uma mãe que cuide de mim. Contudo, podemos sempre questionar até que ponto é que a minha objectividade relacional se tem mantido, principalmente nos termos das últimas ocorrências...
Sempre senti a injustiça de que esta grande senhora tenha sido maltratada pela história e tenha sido esquecida pelo país (mas deste género de injustiças é o mundo matricialmente constituído), daí mais uma razão para a minha grande admiração por ela, e, por todas estas razões, não deixei de me tornar seu protector. Recentemente, a minha doente começou a sentir-se maltratada por uma das empregadas que tomavam conta dela. Ela sentia-se injustiçada por tanto ter dado a essa pessoa, e a empregada, devido a problemas do foro pessoal, entrou num processo depressivo que a levava a gritar com a minha doente. A minha doente abriu-se comigo e eu não vacilei em tomar posição e em protegâ-la. Pois, mesmo que não possuísse a admiração que possuo por ela, não deixa de ser uma velhota de 92 anos, com todas as condições necessárias à consciência e, portanto, ao livre arbítrio, a ser maltratada na sua própria casa.
Perante tal situação, ao invés de me manter meramente alerta, resolvi dar um pontapé às considerações de ordem ética e outras de ordem analítica (a questão da transferência e da contra-transferência), envolvendo-me mais no "processo". Aproximei-me da doente, da maneira mais singela possível. Tornei-me seu aluno de francês (língua que já há muito queria rever). E pretendo deixar de receber o seu dinheiro, pelo que as minhas sessões de Fisioterapia serão pagas por ela com o ensino da língua francesa. E resolvi manter a máxima atenção à situação, até que ela estivesse resolvida (a empregada acabou por ser despedida).
Agora, a minha doente é simultaneamente minha professora. "Somos colegas", como ela própria diz. E não duvido que todas aquelas tretices da "objectividade relacional terapêutica" não passam de meras considerações de ordem teorética. Na prática, há doentes de que gosto mais e doentes de que gosto menos, e, por mais que tente tratá-los todos da mesma maneira, há uns com os quais não tenho problemas em estabelecer uma amizade ou outro género de relação mais ou menos simbiótica. Na realidade, acredito que é preciso gostar minimamente dos nossos doentes para nos preocuparmos com eles. Se não nos envolvermos minimamente nas suas vidas - sem, claro, qualquer risco de sermos paternalistas - não vamos conseguir passar a mensagem. Portanto, não obstante a necessária manutenção da Liberdade do doente, por vezes, temos de criar subjectividade e interferir (e deixar-nos ser interferidos) na sua vida.
Admiro aqueles profissionais de saúde que têm algo verdadeiro a dizer sobre a vida e a dignidade do doente. Admiro o profissional que admira o seu doente. Admiro o profissional que põe as questões de ordem subjectiva à frente das questões de ordem técnica. Nos livros de Simone de Beauvoir, "A cerimónia do adeus" e "A morte suave" (Edições Cotovia), esta filósofa relata experiências médicas em que denota a existência dominante de profissionais de saúde que se preocupam unicamente com os aspectos técnicos da vida do doente. A qualidade dessa vida e o respeito pela história de vida do doente não interessam muito à maioria dos profissionais. Mas eu convenço-me cada vez mais que é preciso criar uma certa "compreensão" pelo doente, e pela entidade única e singular que ele constitui. No fundo é disso que trata a Fenomenologia do Espírito.