terça-feira, novembro 24, 2009

Epistemologia e o Livre-arbítrio

A tentativa de edificar um paralelismo entre a filosofia do conhecimento – entendida aqui como “epistemologia” – e a teoria do “livre-arbítrio” releva de um conjunto de questões extremamente pertinentes para o mundo da filosofia em geral e o “submundo” da filosofia da ciência em particular. A forma como vemos o mundo e o concebemos em termos ontológicos depende efectivamente da maior ou menor precisão fenomenológica na forma como inteiramos o acto de produção científica. E, ao contrário do que poderia ser pensado, o “argumento dominador” (relativo ao determinismo vs. libertismo) jaz impertinentemente nos meandros da temática epistemológica.
Tendo sempre Karl Popper como fronteira inolvidável – própria de uma ciência dedutiva construída por propensões com vista à evolução por “falsificabilidade” – entre uma ciência observacional e uma ciência ideográfica, devemos ter em conta que existe uma barreira enorme entre a ciência própria dos neo-positivistas e a ciência “menos ciência” dos pós-modernistas.
A ciência indutiva e observacional é vista pelos cientistas – principalmente aqueles que presidem à estruturação das ciências ditas “exactas” – como sinónimo de uma Verdade única constituída por Leis, sendo que estas, por terem um certo poder preditivo, tornam o mundo pré-determinado. Bertrand Russell diz, em entrevista publicada na obra “A minha concepção do mundo” (1970) o seguinte: “Estava convencido de que todos os movimentos da matéria, a partir da nebulosa primitiva e por aí adiante estavam condicionados, e que a linguagem falada era também atingida pelo mesmo determinismo. Por isso convenci-me de que as leis da dinâmica tinham assegurado, na época da nebulosa primitiva, as palavras exactas que o Sr. A haveria de pronunciar em determinada ocasião; o Sr. A, portanto, não teria qualquer livre-arbítrio quanto às palavras que havia de pronunciar.”
É irónico que as mesmas leis da dinâmica, que a um nível macroscópico são leis de peso determinístico, tornam-se, a um nível “quântico” “leis de probabilidades”. Que é o mesmo que dizer que acontece aquilo que tem sido apelidado de “Ordem sobre o Caos”. Ou seja, leis com algum peso de determinismo e futurismo baseiam-se em movimentos tão ínfimos e tão infinitesimais (falamos de movimentos de partículas sub-atómicas) que a incapacidade de previsão de todos os movimentos leva a transformar Leis propriamente ditas em teorias de probabilidades. E quanto mais nos afundamos no nível microscópico desses movimentos, mais os mesmos se tornam indeterminados – tanto que a mera tentativa de os determinar vicia o sistema – e, aumentando o grau de indeterminismo, torna-se possível categorizar ontologicamente o Livre-arbítrio. Esta teorização – subjacente ao por muitos chamado de “efeito borboleta” – é a base do pós-modernismo, o qual, munido de instrumentos historicistas e contextuais (para utilizar a terminologia crítica de Popper em “A pobreza do historicismo” – 1957 – e em “O mito do contexto” – 1996) advoga a impossibilidade de determinação, a impossibilidade de existência de leis, e a evolução da própria ciência – ao sabor da história/cultura vigentes – por “paradigmas e revoluções” (Thomas Kuhn). Temos aqui a base daquilo que Popper denomina de “racionalismo dogmático”, que é o pré-requisito do relativismo, associados ambos – em “A sociedade aberta e os seus inimigos” (1962) – sobretudo às teorizações “políticas” de Platão e Marx.
Devo dizer que sempre achei que o erro crasso dos pós-modernistas residia no facto de acharem que existe uma igualdade entre a impossibilidade “actual” de previsão dos movimentos infinitesimais das partículas e a impossibilidade real da mesma previsão. A meu ver, o cientista poderá não ter grandes possibilidades de previsão dos movimentos dos “quanta” no momento actual, mas isso não significa que os mesmos não sejam virtualmente determináveis, num momento futuro, em que sejamos donos de instrumentos tecnológicos suficientemente sensíveis. E a possibilidade de previsão virtual dos milhões de movimentos e dinâmicas que formam o “efeito borboleta” inquinam a existência de um verdadeiro relativismo, fazendo com que, a médio ou longo prazo, as diversas ciências humanas e sociais tenham de abdicar face aos métodos das ciências exactas. Sou, portanto, dos poucos que acreditam que a consciência aprimorada que todos temos de ser livres não passa de uma mera ilusão.
No entanto, não é despiciendo o contexto discussional do pós-modernismo, principalmente aquele que é formulado em “A estrutura das revoluções científicas” (1962) de Kuhn, o qual coloca a tónica no cientista enquanto “homem”, vítima de um tempo e de um espaço contextualmente determinados.

Publicado no "As Artes Entre As Letras", 04/11/09

quarta-feira, novembro 11, 2009

Ciência e Epistemologia: dualidade indissociável

Quem acompanha o meu blog sabe a importância que dou à Ciência e às matérias epistemológicas (e a relevância que tal tem para a compreensão do 'Método' em Fisioterapia). Estou, actualmente, a publicar artigos sobre Epistemologia no jornal "As Artes Entre As Letras".
Apresento aqui um dos primeiros artigos que publiquei, nomeadamente a 07/10/09
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Ciência e epistemologia: dualidade indissociável


Desde os antigos gregos que o poder do ‘Logos’ tem sido relevado enquanto matéria quase mítica. A filosofia, e em particular a teoria do conhecimento, tem-se interessado pela Verdade, sendo que, mais tardiamente, somente no tempo de Galileu, ter-se-á inventado o conceito de “ciência moderna” (como um campo independente da filosofia). E, a partir daí, desde o século XVI, até à actualidade, a Ciência tem-se afirmado enquanto sinónimo de Verdade, baseada num sistema de leis de carácter quase inquestionável, assim como tem permitido a transformação – tanto tecnológica, quanto ideomática – do mundo.
Muito pode ou poderia ser dito sobre Ciência e o método que a consubstancia, mas, a meu ver, são três as fases fundamentais de construção de um método dito expressamente “científico”. A ciência moderna foi primacialmente substanciada pelas descobertas de Copérnico e Galileu, e epistemologicamente teorizada pelo (neo)positivismo lógico (conhecido também por essencialismo). Segundo o “clássico” método científico, a observação norteia as hipóteses científicas (princípio iniciático de Francis Bacon), as quais poderão ou não ser confirmadas pela experimentação. Esta é a ciência mais “típica”, baseada na observação e no processo de generalização indutiva, e é a força motriz das ciências ditas “exactas”. É influenciada pela filosofia analítica de Russell e pela semiótica de Wittgenstein, as quais, de certo modo, pendem mais para o empirismo do que para o racionalismo, tendo como cenário base a divisão continental clássica mais importante da história da filosofia. Foi preciso aparecer um homem de nome Karl Popper (1902-1994) para que esta ciência “indutiva” fosse questionada, assim como a tendência inequívoca dos investigadores para quererem forçosamente “confirmar” as suas teorias. Segundo Popper, e o seu método do “Racionalismo crítico”, um investigador nunca deveria fazer por “confirmar” as suas próprias teorias, pois acabará, mesmo que inconscientemente, por concluir aquilo que deseja efectivamente concluir. Assim sendo, a ciência deveria basear-se na “refutação”, na “falsificabilidade”, na tentativa de detectar erros nas teorias aceites como “certas e irrefutáveis”. A ciência de Popper é dedutiva e, apesar de o filósofo admitir a existência de uma Realidade exterior única inolvidável (adoptando um tipo de realismo científico que contraria tendências fenomenológicas e essencialmente psicologistas), toda a teoria não passa de mera conjectura, e portanto, toda a ciência possui uma categoria de efemeridade (a função do cientista passa pelo processo de aperfeiçoamento da teoria, por um mecanismo de trabalho de “tentativa e erro”). Finalmente, no final do século XX, surge, a partir do conceito de “paradigmas” de Thomas Kuhn, uma ciência dita “pós-moderna” – representada, em Portugal, por Boaventura de Sousa Santos – a qual admite que a Verdade está totalmente dependente das idiossincrasias socioculturais e pessoais adstritas ao próprio cientista. Para os pós-modernistas, existe um relativismo absoluto e não existe uma Ciência no verdadeiro e apodíctico sentido do termo.
Esta última modalidade epistemológica de ciência é comum essencialmente às ciências sociais e humanas. Nas ciências exactas, tal paradigma epistemológico aparece consubstanciado pelo “princípio da incerteza” de Heisenberg e pelo teoria do Caos (encontramos, portanto, aqui a ponte entre os dois “tipos” de ciência). Esta ciência dita “historicista” foi criticada profusamente por Popper em obras como “A pobreza do historicismo” (primeira edição de 1957; tradução portuguesa pela “Esfera do Caos”) e “A sociedade aberta e os seus inimigos” (primeira edição de 1962; edição portuguesa por “Fragmentos”), pelo facto de, pelo seu relativismo, permitir e justificar a emergência de uma ciência de “várias verdades”, portanto “não realista” e não “falsificável”.
Acabamos por ter uma dupla possibilidade de matriz de conhecimento científico: a ordem, expressa em termos de leis, com base no caos (expressa em termos de uma física dos quanta), que é própria de uma ciência dita “exacta”, e o caos com base na ordem (expressa nos termos da teoria das ideias ou essências de Platão), que é própria de uma ciência dita “relativa”. A primeira tende a ser mais apriorística e admite a impossibilidade do livre arbítrio (para esta, Deus pode mesmo estar “morto”...). A segunda tende a ser mais empirista (num sentido mais idealista, como em Hume), e admite a possibilidade de uma fenomenologia da acção irrepetível e do livre arbítrio, seja ou não de génese existencialista (para esta, Deus pode mesmo jogar aos dados ou nem sequer interferir com as nossas vidas...). Deste binómio realismo-subjectivismo ou essencialismo-pós-modernismo, resulta uma metodologia científica centrada mais nas investigações nomotéticas, naturalmente mais “falsificáveis”, ou então, uma metodologia centrada mais nas investigações ideográficas, como os “estudos de caso”, mais adaptadas à descrição de realidades singulares e irrepetíveis, que tendem a ser vistas por cientistas sociais como próprias de uma antropologia, sociologia e/ou etnologia descritiva de populações com caracteres variantes. Os dois “eixos” descritos cruzam-se constantemente, em várias ciências ainda indefinidas epistemologicamente, como é o caso da psicologia e das ciências da saúde. Mas isso é conversa longa, gerando ainda grandes polémicas...
Acontece que as diversas diferenças epistemológicas tratadas não são, infelizmente, do conhecimento da maioria dos cientistas portugueses. Aliás, pessoalmente conheci doutorados em química e física que nunca ouviram falar, por exemplo, de Popper ou do “Discurso sobre as ciências” de Boaventura de Sousa Santos. Para muitos deles a ciência continua a gerir-se pelo paradigma “positivista”. E assim sendo, o processo científico continua a realizar-se através de confirmações de hipóteses de cientistas nem sempre “inocentes”. Isto é o mesmo que dizer que, com uma ciência feita de “confirmações”, e que desvaloriza a importância do erro e da infirmação de hipóteses, os cientistas acabarão muitas vezes, mesmo que inconscientemente, por concluir aquilo que efectivamente desejam concluir (coisa que Popper denominou de “Efeito Édipo”). Tenho observado este fenómeno a ocorrer constantemente nos estudos da área das ciências da saúde e das ciências sociais e humanas. Se acrescentarmos a isto os problemas normais do “fazer ciência” (a ignorância metodológica, os erros da estatística, a falta de ética da parte das publicações demasiadamente ligadas a lóbis, os atrasos no processo de publicação e toda a catadupa da fraude – como a cópia ou o plágio, assim como a manipulação parcial de dados aquando da pesquisa, tratamento estatístico ou acto de revisão bibliográfica), acabamos por deparar-nos com a necessidade de uma Ética centrada na dualidade impartível entre a metodologia científica do cientista-técnico e a epistemologia do cientista-filósofo.
Daí que não faça sentido existirem certas disputas, assim como cientistas “positivos” fanáticos com a ideia de Leis e invariantes, ou como cientistas sociais, igualmente fanáticos, que negam a existência de uma natureza humana com certos universais. Tenho a certeza que a inexistência de uma dialéctica que caminha no sentido de uma síntese hegeliana de consensualidade advém precisamente da falta de comunicação entre o cientista e o “filósofo”.

terça-feira, novembro 03, 2009

Curso "Reeducação Postural e Cadeias Musculares": conclusão

O curso da Lousã realizou-se e parece que houve bastante satisfação no respeitante ao mesmo. Não tenho os dados da avaliação, mas, pelo pouco que vi, as pessoas pareciam satisfeitas. Houve, inclusive, várias possibilidades de troca de ideias e partilha de conceitos. Mas, como nem tudo são rosas, há efectivamente coisas que não correram na perfeição. E o aspecto que demonstrou ser mais notório foi precisamente o facto de o curso ser curto de mais para as necessidades de avaliação e intervenção postural, principalmente por parte de quem não tinha formação de fisioterapeuta. Talvez tenha o hábito de sobrevalorizar os formandos... não sei... Sei que, num curso próximo, tem de ser aumentado o tempo de avaliação e intervenção, com necessário prolongamento do curso na sua duração.
Vou dando mais notícias.
Abraços