sexta-feira, março 25, 2011

O corpo industrial

Artigo publicado no Jornal 'Avante!', dia 24/03/2011
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Enquanto componente da História humana, a história do corpo não pode deixar de ser atendida na sua relação muita significativa com o capital e a industrialização. Apesar de ter sido relegada para segundo plano por um ainda bem vivo platonismo milenar, a historicidade corpórea não deixa de se consubstanciar como significante, ainda mais porque existe um paralelo entre a actividade laboral e ocupacional humana e a forma como o corpo é usado, tratado e investido; paralelo que expressa quase sempre uma noção de instrumentalização, num objecto corporal que foi tantas vezes fortemente maltratado, seja num sentido utilitário, seja num sentido mais abstracto.
Se numa época feudal o corpo foi usualmente escravizado (mas ainda mantinha o seu contexto natural de inserção), numa época posterior, iniciada com a primeira revolução industrial, o corpo não deixou de ser usado primacialmente como uma máquina capaz de produzir e fabricar (correspondente ao que Hannah Arendt designa de homo faber), e posteriormente como invólucro de conservação de energia e conversão e propulsão (homo motor), o que designa que o corpo foi tratado em função da sua utilidade produtiva, transformando-se numa máquina mecânica naturalmente desenraizada.
Esta época de modernidade já concebe o corpo humano como um sistema biomecânico que tem determinadas funções. Quando avariadas essas funções, o corpo deixa de possuir qualquer sentido, e uma figura de autoridade (médica) precisa de restaurar a função em perda. Já aqui, tanto a funcionalidade quanto a saúde do corpo apelavam a um conjunto de relações de poder (aqui é relevante o trabalho de Foucault) e à sempre inexistente relação de autonomia para com os “mecânicos do corpo”.
Por outro lado, na época actual de pós-modernidade e de “hiperconsumo” (Lipovetsky), o corpo perdeu parcialmente o seu estatuto de máquina produtiva, exceptuando claro as profissões fortemente manuais, mas ainda assim não perdeu o estatuto de “corpo industrial” ou “corpo do capital”. É que, na verdade, novas “indústrias culturais” agitam estes tempos de vivência do supérfluo... Certas terapias, como o Wellness ou determinadas medicinas não convencionais, assim como o Fitness, esse conjunto de práticas físicas que violentam um corpo posturalmente frágil, são marcas de um capitalismo impiedoso em que o objecto corpóreo passa a funcionar como um receptáculo passivo da efemeridade. Efemeridade, seja pelo prazer alienante a que se induz o corpo (capaz de funcionar como um antídoto para a sofreguidão dos dias de trabalho e também para a necessidade de manter a necessária alienação face ao poder do determinismo liberal), seja pela mistificação a que se submetem terapêuticas que tentam a subjugação do cliente/doente face ao poder de uma prática “divina” ou “mágica” (tendo como intermediários agentes do “poder”, que fazem uso do dogma ou até mesmo da “banha da cobra”), artifício de um sempre inebriante e sufocativo marketing de pendor hipnótico.
Em particular, o Fitness reduz o corpo vivido e com história a um mero artefacto que só importa no sentido quantitativo... Um corpo que deveria ser objecto histórico e fenomenológico, no sentido em que é fenómeno sempre complexo, único e irrepetível, necessariamente criativo, intencional e inventivo, é transformado num vale de capacidades e classificações, numa lógica que é a do resultado e nunca a do processo (quando, no fundo, o caminho importa sempre mais que o destino...). O corpo é reduzido a um desempenho quantificável, quando só deveria ser visto enquanto ente em constante renovação heurística...
É este corpo, que é aparentemente vivido e experienciado, mas na verdade não verdadeiramente integrado, que tende a ser negado todos os dias, numa cultura que é, por natureza, de negação e desaproximação do Eu. Merleau-Ponty referia a dicotomia “Tenho um corpo” versus “Sou um corpo”. É pouco dubitável que a primeira parte da dicotomia continua a vencer o estatuto do corpo como parte da própria identidade.
O corpo expressivo, o corpo intencional, o corpo cúmplice que ama e se associa em comunidade... O corpo livre de paternalismos e de artifícios quiméricos... O corpo feito comuna... É este corpo global que propende à verdadeira descoberta do sentido de um Eu verdadeiro para consigo e para com os outros.

sexta-feira, março 11, 2011

A ‘Geração à rasca’ e o ensino superior

Muito se tem falado actualmente na “geração à rasca” e muito se tem, de facto, elidido acerca da mesma. É certo que esta nova geração, à qual eu mesmo pertenço, possui elementos com grande capacidade de trabalho e até alguma cultura, mas é também certo que esse facto é mais a excepção do que a regra...
Na verdade, a nova geração possui uma evolução diferente das gerações anteriores, sendo que foram as gerações pretéritas, as quais se desenvolveram numa sociedade em que um curso superior fazia toda a diferença, que nos motivaram a pegar nos livros e nos convenceram que o nosso futuro dependeria do avanço escolar obtido; a nova geração não se desenvolveu na luta contínua das gerações anteriores... Nós tivemos acesso privilegiado aos livros e pudemos dedicar-nos exclusivamente a eles. E de tal modo pudemos intelectualizar-nos que muitos de nós tornámo-nos inseguros e fomos fazendo cursos e avançando nos graus académicos, adiando a hora de inserção no mercado de trabalho.
É claro que o boom de licenciados era inevitável, até porque, percebendo que havia ali uma grande fonte de negócio, as instituições de ensino superior reproduziram-se, a si mesmas e aos seus cursos, como cogumelos. Ora, se é certo que o mercado português deveria ter crescido mais do que realmente aconteceu, também é certo que esta cultura excessivamente obcecada pela formação superior não pragmática, num ensino superior crescentemente facilitado, fez com que um número insuportável de mestres e doutores, menos cultos e com menores capacidades de trabalho, e sobretudo com menor capacidade de luta e criação de auto-emprego, surgisse e viesse reclamar aquilo que as velhas gerações prometeram e o novo paradigma económico-financeiro do país já não pode dar.
Obviamente a formação superior é e será sempre uma vantagem, mas também é certo que o problema da nova geração passa pela existência de um novo paradigma económico e laboral que implica uma mudança de atitude que ainda não se verificou. Por mais que custe, é preciso largar a formação excessiva e enganosa e “pôr as mãos à obra” nesta hora em que vale mais o empreendedorismo do que a passividade.

Publicado como carta no jornal "i", 09/03/2011

quinta-feira, março 10, 2011

História da medicina: ecos e relativismo

Uma História especificamente racional do corpo e da medicina é tarefa impossível! Ou, no mínimo, improvável! Uma multiplicidade de visões e de mundividências é mais afecta à realidade. Uma realidade que é feita de um tecido de inumeráveis epistemis, num confluir sempre inconstante de fronteiras só aparentemente racionalizáveis. A História da medicina, aliás as histórias das medicinas só podem perfazer-se pelo encontro inexaurível com o sempre volúvel estatuto de uma (in)adequada cientificidade.
Na realidade, a História da medicina é um reflexo da História da própria ciência, atendendo a que as práticas tanto etiológicas quanto prognósticas e terapêuticas da profissão acarretam a mesma matriz básica que o tecido que constitui a própria trama científica: um objecto de estudo e um método reconhecido como científico.
À semelhança do método científico propriamente dito enquanto componente da história da ciência, o método que podemos designar de “médico-científico” sofre inúmeras mutações com o tempo, sendo que aquilo que é considerado como científico num tempo ou numa comunidade determinada, deixa de ser visto como tal num tempo subsequente ou numa comunidade com padrões de desenvolvimento metodológico e/ou tecnológico mais modernos.
Não admira que aquilo que já foi visto como prática científica e “séria” no passado seja comummente visto na actualidade como prática mística, ou mesmo mágica, própria do que muitas vezes vemos como pseudociência, “banha da cobra” ou charlatanice... Esta mesma charlatanice ganhava frequentemente ecos de manipulação psicológica (à semelhança do que acontece com muitas práticas místico-dogmáticas actuais), fazendo com que práticas como as sangrias e as trepanações fossem aceites acriticamente como “normais”, mesmo quando não pareciam resultar. Veja-se o exemplo literário singular e paradigmático inesquecível de “Le malade imaginaire” de Molière...
Como sabemos, tanto a história da ciência como a história da medicina só viriam a possuir o aspecto “epistémico-metodológico” dos tempos actuais a partir da vivência do positivismo (e consequente mecanicismo concretista e materialista) do século XIX (sabidamente, no respeitante ao exemplar paradigma cosmológico, uma História que inclui as obras de homens como Galileu ou Newton não foi suficiente para superar prematuramente uma certa escolástica aristotélico-cristã...). Mesmo no mundo contemporâneo, muitas práticas terapêuticas que podemos designar de “pré-científicas”, incluindo algumas socialmente mais aceites ou reconhecíveis como a osteopatia e a acupunctura (para não citar outras práticas corporais que José Gil refere no seu “Metamorfoses do corpo” como sendo uma forma de violentar o corpo), fazem eco das práticas físicas “dogmáticas” (algumas quase demiúrgicas...) do tempo pretérito, tendo pessoalmente defendido há uns anos atrás que alguns terapeutas “não convencionais” chegam a sofrer do que apelido de “Complexo de Jesus Cristo”... “complexo” que vai sendo justificado e legitimado com base numa suposta globalidade ‘bio-psico-social’ (ancorada num pretenso raciocínio clínico que perspectiva o ‘doente’ em desmérito da ‘doença’, relevando de elementos que descomprometem a perspectiva da “classificação da(s) doença(s)” e da categorização das terapêuticas, em favor de uma actuação terapêutica de índole fenomenológica e funcional, e portanto heurística, espontânea e criativa) que a ciência médica ortodoxa supostamente não possui...
Mas não nos iludamos! Mesmo na medicina canónica ou na fisioterapia convencional, existe um certo nível de acientificismo, agindo muitas vezes a tradição e até a autoridade enquanto fontes legitimadas de conhecimento... e de poder.
O estatuto epistemológico da medicina, da fisioterapia e de todas as práticas da “Salud” continuará, portanto, sempre a necessitar de uma necessária translocação de pragmáticas e metodologias pré-científicas em pragmáticas e metodologias adequadamente científicas... entendendo-se, claro, como ‘científicas’ aquelas que são racionalmente irmanáveis. Por outro lado, a sempre desejada visão holística do doente, necessária à afirmação de certas práticas de saúde em relação à mais “limitada” medicina ortodoxa, nem sempre se compatibiliza com a “medicina baseada na evidência”, por premiar as já referidas práticas que apelam ao “relativismo dogmático”. Estas são, numa certa perspectiva, a consequência lógica das práticas de carácter ideográfico, nas quais a preocupação pela ‘qualidade’ “desconstrói” a preocupação com a quantidade e a mensurabilidade.