quarta-feira, agosto 10, 2011

Capitalismo e medicina: o corpo fragmentado (1º)

«Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar» (Bernardo Soares/Fernando Pessoa, in «O Livro do Desassossego»)


No território dessa tão prolífica matéria que trata da «filosofia da corporeidade», é possível conceber múltiplos discursos sobre a forma como o corpo tem sido histórica e racionalmente substanciado, correntes de pensamento que se tornam subitamente mais ricas no alvorecer da «modernidade», época que, num contexto de ainda mal nascido liberalismo subjugador, conforma o surgimento de um novo modelo «epistemológico» (ou seja, relativo à teoria do conhecimento) do «espírito do tempo» (conhecido como «episteme», segundo a gíria de Michel Foucault) que irá modificar radicalmente a forma como o «corpo» passará a ser conceptualizado. Encararemos, no contexto desta mudança, algumas das características que definem a forma como a medicina (e outras profissões/práticas de saúde) concebe o «físico», assim como o seu princípio definidor, funestamente rendido à máquina capitalista.
Para a nossa discussão é especialmente pertinente ter em conta a concepção dos tempos segundo a perspectiva dos já referidos «modelos epistemológicos» de Foucault - utilizando como referência base a obra «As palavras e as coisas» (1966) - definindo cada um deles a forma de uma época determinada conceber/manipular o objecto do conhecimento (ademais, de modo a abarcar especificamente a «realidade clínica», a referência «O nascimento da clínica» - Foucault, 1963 - é de mor importância).
Assim sendo, releva referir que a principal mudança ocorrida no início dos tempos modernos (por volta do início do séc. XIX) na forma como podemos conceber o próprio conhecimento consta na transformação de uma visão do mundo feita de «continuidades» numa visão que, por científica (no sentido clássico do termo) se pretender, tudo dilui, secciona e categoriza, levando a uma inevitável descaracterização do objecto do conhecer. O corpo e a medicina que dele se ocupa não são excepção ao confluir desta nova «episteme» e, assim, uma medicina «global» que vê o corpo como uma totalidade funcional/sistémica - e também psico-física - (que não deixa, contudo, de ter subsistido enquanto prática artesanal, com traços de dogmatismo mistificador) transforma-se numa medicina «científica», que, com o objectivo de dilucidar e «reduzir» intelectualmente o seu objecto de estudo, divide e fragmenta «racionalmente» o corpo em sistemas progressivamente mais especializados e relacionalmente desligados.
O paralelismo existente entre esta «fragmentação» racional e as necessidades de uma nova ciência e de uma emergente economia rigidamente quantitativas não é difícil de estabelecer, ainda mais porque subsiste até ao tempo corrente esta tão grande «conspiração» que grassa entre a «medicina científica» e o capitalismo.
Esta pode ser exemplificada de inúmeras maneiras, sendo que um dos seus caracteres modelares reside na forma como é gerido o Serviço Nacional de Saúde, incluindo a relação entre uma medicina que cura e reabilita os cidadãos e as necessidades de um Sistema que está francamente dependente da produtividade de trabalhadores saudáveis.
Por outro lado, o próprio modelo «biomédico» de saúde, que concebe o corpo como uma máquina que deve ser mecanicamente reparada nas suas funções relativamente independentes entre si, coaduna-se facilmente com as necessidades de uma medicina de âmbito essencialmente curativo (portanto, sem grandes preocupações com a prevenção e reabilitação bio-psico-social), que propende o lucro e que se pretende rápida e funcional no atendimento do doente, sem grandes preocupações de âmbito «espiritual».
Esta mesma medicina «estrutural» e «científica» pende uma visão da patologia como conjunto de rótulos/classificações aplicados enquanto generalizações de «casos» semelhantes (depositários de «leis»), cujos corpos, desprovidos de subjectividade e unicidade, são também eles desideratos de classificações anátomo-funcionais. A este corpo doente são aplicadas prescrições curativas, desempenhando estas um trato do corpo rigidamente quantitativo.
Outras profissões de saúde, tal como a Fisioterapia ou a Enfermagem, tendem, apesar de tudo, a conceber uma relação mais «holística» com o corpo, sendo que, quando autonomizadas relativamente à medicina propriamente dita, essas profissões poderão exercer uma intervenção que visa o corpo na sua totalidade (tanto nos seus diversos sistemas físicos quanto numa totalidade mente-corpo); esta intervenção implica uma perspectiva qualitativa do corpo em desprimor de uma visão mais quantitativa e categorizada, a qual tem sido usada privilegiadamente pela medicina no sentido de reforçar as características do Sistema vigente (capitalista e também poderosamente de índole quantitativa), ao qual se encontra adaptada, incluindo a assunção de um estatuto que se alimenta de hierarquias e de relações de poder (que são, em última análise, legitimadas pelo próprio Sistema).
As referidas relações de poder fundamentam-se, então, tradicionalmente, num jogo de subjugação dos profissionais de saúde não médicos, assumindo, muitas vezes, a medicina um papel dogmático e mistificador, o que a torna, ironicamente, semelhável à medicina pré-moderna. Mas, em última análise, a relação de poder dominante é aquela que se estabelece com o próprio doente, e que se converte numa relação de posse do seu corpo, o que transfigura o doente numa entidade passiva e pouco auto-consciente, senão alienada, porque esvaziada da sua «autonomia ética» e grandeza «humana».

Publicado no site do 'Expresso'