quarta-feira, junho 27, 2012

Médicos, enfermeiros e afins: poder e capitalismo

Não é preciso ser um especialista na filosofia de Michel Foucault para saber, ou, no mínimo, desconfiar que a História do corpo, talvez mais do que as outras modalidades da Historicidade, se faz constituir mais por uma fenomenologia do irracional e até do dogma, do que propriamente por uma suposta objetividade científica e/ou clínica. Essa irracionalidade aparece travestida, sobretudo, de uma problemática de poder, com este a exercer-se sobre o corpo e aparelho decisional do doente, mas bastante mais no formato de uma querela interdisciplinar que, tradicionalmente, opõe médicos a enfermeiros e/ou outros profissionais de saúde não médicos. Atualmente, a presente “altercação” atinge um limite nunca vivido, com um desenlace que parece já adivinhar-se e que, mais do que expressão de uma escolha refletida e racional, é, na verdade, o resultado do próprio paradigma económico emergente.
É bem certo que, mesmo sendo difícil de acreditar por parte das “maiorias” a que vulgarmente chamamos de “opinião pública”, um olhar mais analítico poderá permitir identificar uma série de questões complexas que parecem não ter existência, mas são, na realidade, o fundamento de qualquer decisão política e/ou institucional consciente. O meu duplo papel de fisioterapeuta e de ensaísta de pendor marxista promete complicar ainda mais as múltiplas questões que se levantam, essencialmente porque o interesse do “profissional” parece contrapor a atitude do ensaísta.
Não obstante, tal contraponto parece até nem existir, e vejamos porquê… Ora, tal como referi em «Corpo e pós-modernidade» (Esfera do Caos Editores), é inegável que, com o advento do liberalismo, teve lugar o surgimento de uma medicina com carácter científico que, mesmo possuindo uma maior probabilidade de se desenvolver enquanto ciência “séria” e “não dogmática”, viria a marcar o início de uma perspetivação do corpo que não mais mudou globalmente até ao presente. Refiro-me à criação de uma visão “mecânica” do corpo, que, subjacente ao modelo que apelidamos de “biomédico”, pressupõe a divisão em peças, a categorização semiológica e/ou a decomposição estrutural de uma entidade que não pode nem deve deixar de ser vista na sua globalidade sistémica. A fragmentação do corpo tem a vantagem inquestionável de facilitar a “educação clínica” e até a especialização médica, mas é o processo que permite epistemológica e inquestionavelmente a estruturação absoluta do conluio entre a medicina e o capitalismo. Pois que havendo que transformar a Saúde em mercadoria e o corpo em indústria, o modelo biomédico encaixa-se na perfeição, e é precisamente esta “conspiração” que permitirá reforçar o papel dogmático de um “médico-Deus”, dono e senhor do doente, um “Doutor” do corpo, na realidade em constante despreocupação com a “alma” e até com uma certa intenção de subjugação paternalística desta.
Ora, é bem certo que o aparecimento das profissões de saúde não médicas fez-se neste mesmo contexto de modelo “biomédico”, sendo certo que uma parca formação e a “falta de oportunidade política” manteve atividades como a enfermagem e a fisioterapia numa posição subsidiária. Entretanto, como quem é filho de determinados pais, ainda assim tem direito à saída do “paraíso original”, uma certa carência de autonomização não poderia deixar de se buscar numa necessidade de educação e graduação bastante fortalecida. Esse crescimento da exigência da formação é uma realidade inquestionável, e cá estou eu para garantir os meus vários anos de grande sofrimento com vista à mera licenciatura. Portanto, que os profissionais de saúde não médicos têm já uma formação “médica” robusta é inegável e a assunção do contrário revela somente ignorância. Obviamente que, perante tal exigência de formação, é impossível o profissional de saúde não médico não se sentir, de algum modo, frustrado perante a pouca autonomia que lhe é reservada. O crescimento das ditas profissões parece, assim, possuir até uma certa e justa pertinência!... No entanto, parece-me que tal crescimento, feito em subjacência ao “modelo médico”, apenas vai levar a que os enfermeiros e outros profissionais se tornem novos médicos. E, verdade seja dita, bem me parece que a luta pela autonomia não passa de mera luta pelo poder. E de que serve mais poder se este vai servir para alimentar um novo lóbi profissional, o qual pretende manter o mesmo tipo de intervenção que se mantém numa relação de cumplicidade com o liberalismo? Parece-me que, assim sendo, somente se transferirão “competências”, sendo que, a acrescentar aos tantos e tantos “médicos-burocratas”, passaremos a ter (como, de facto, já temos) os “enfermeiros-burocratas”. Por outro lado, a assunção de que tal transferência permitirá poupar dinheiro ao Estado é, de algum modo, enganosa, pois, não só os enfermeiros estão prestes a ganhar financeiramente mais do que sempre ganharam, como a mera possibilidade de “passarem exames” vai levar a mais um “inflacionar” do processo de realização de exames desnecessários, que, a bom saber, é já, no mínimo, escandaloso.
Ora, não deixo, no entanto, de estar de acordo com a autonomização dos profissionais de saúde não médicos. Mas acredito que tal “caminho” deverá passar necessariamente pelo trabalho no sentido da mudança de paradigma. Ou seja, a autonomia deverá basear-se num modelo epistemológico de intervenção também ele autónomo do modelo “biomédico”. Somente na “diferença” fará sentido qualquer tipo de autonomização! Ora, reconheço que, nas últimas décadas, o paradigma “biomédico” tem sido sujeito a revisões e cuidada reflexão. E o resultado é que cada vez mais os profissionais de saúde – médicos incluídos – pretendem-se mais “humanos” e “globais”. E a consciência de que a autonomia dos profissionais de saúde não médicos passa pela referida mudança de paradigma é tal que, de facto, os enfermeiros e terapeutas se têm pretendido “holísticos”. O grande problema reside precisamente aqui. É que, independentemente do que tem sido “vendido”, a esmagadora maioria da atividade dos enfermeiros e terapeutas não pode ser considerada holística, pois que uma visão “nosológica”, “mecânica” e “fragmentada” do corpo persiste em manter-se teimosamente arraigada aos profissionais de saúde. Culpa sobretudo do paradigma económico, bem o sabemos, pois que é impossível tratar o “todo” do doente quando simultaneamente o neoliberalismo pretende transformar o “utente” num artigo catalogável e descartável.
Bem sei que, pessoalmente, vejo o doente na sua “totalidade”; a minha intervenção visa o corpo por inteiro, sendo que o tratamento de uma área do corpo poderá significar o tratamento da totalidade do doente e até a intervenção psico-emocional. Mas também sei que, para poder praticar esta intervenção, tive de abandonar o Sistema, e, não havendo contexto de Clínica ou Hospital que permita uma intervenção que vise a verdadeira holisticidade (pois que tais instituições trabalham segundo o modelo das prescrições de tratamento de partes do corpo divididas), sou automaticamente obrigado a trabalhar enquanto sempre inseguro trabalhador “independente”.
A prometida liberalização do SNS vai, de facto, possibilitar o crescimento das ditas profissões não médicas, pois que há a perceção de que tal “distribuição estatutária” permitirá tornar os serviços mais baratos, mas, como já terei dito, a médio e longo prazo, o utente, aliás cada vez mais “cliente”, acabará por perder, porque o paradigma epistémico e económico básico continua o mesmo… mas agora nas mãos de um punhado de profissionais que, verdade seja dita, possuem uma formação intelectual e cultural ainda muito deficiente; o risível desta questão é que é precisamente essa mesma pobreza racional e epistémica que continuará a manter os profissionais pregados ao desiderato do poder, assim como continuará a impedir a consciência necessária ao abraçar de um novo modelo de tratamento e compreensão do “doente-Pessoa”.

Publicado no site do 'Expresso'

sexta-feira, junho 01, 2012

A pós-modernidade ou o regresso ao Espírito («Corpo e pós-modernidade» revisitado)

Mesmo concebendo que o Universal e a Estrutura denunciam o que do Homem há, em primeira e imatura análise, de mais ontologicamente verosímil, não podemos simplesmente ignorar essa fenomenologia das contingências, esse historicismo a que nos obriga qualquer pretensão de redução fenoménica escalar, e que, de uma forma quase intuitiva, parece revelar a nossa evolução enquanto processo dialético, de natureza essencialmente cíclica e circular, de um todo triárquico que se divide nas três idades que já identifiquei em «Corpo e pós-modernidade» (Esfera do Caos Editores) enquanto idade do sagrado, idade científico-positivista e idade pós-moderna.
Com a pós-modernidade a resultar enquanto síntese de um processo dialético que inclui necessariamente as duas idades anteriores, ainda assim não podemos deixar de notar a semelhança que a idade pós-moderna tem com a idade do sagrado, com estas duas fases da evolução a reportarem uma fenomenologia da continuidade e uma perspetiva panteísta de Deus, e a deixarem a idade positiva a morigerar nessa grande insignificância paternalista de uma realidade que persiste em ser fragmentada por uma necessidade própria de uma modernidade obsessivamente categorizadora e inadvertidamente falaciosa; temos, então, que a idade tese e a idade síntese parecem residir mais na Estrutura, enquanto que a idade científico-positiva, na qual ainda atualmente globalmente nos encontramos, parece predispor ao historicismo – necessariamente materialista, seja num sentido epistemologicamente positivista e mecanicista (que importa mais ao cientificismo base do capitalismo e também do neoliberalismo), seja num sentido epistemologicamente dialético (que importa mais ao hegelianismo e, sobretudo, ao método marxiano) –, com toda a semelhança que esta conceção tem com o pensamento de Foucault, para o qual a origem da História se descobria no advento do liberalismo, prelúdio da modernidade, página de mudança que tinha até ali sido constituída por uma mera arqueologia de saber.
Sabemos já que o conluio entre a cientificidade clássica e a economia capitalista, cuja obsessão com a quantificação perpassa em pleno século XXI, desnaturaliza a realidade, porque a perversão da transdimensionalidade dos objetos é atida como visão epistémica preferencial (porque em subjacência ao princípio pedagógico/organizativo da conservação da energia), e subverte a intenção de um mundo Ético – em que a gestão dos Valores passaria para primeiro plano – confinando-nos aparentemente a um inamovível híper-modernismo de pendor tecnocrata e flagrantemente imoral… em resumo, um mundo sem esperança!...
Mas sabemos também que na mente de certos homens cuja estoicidade permite vencer a tentação da mundanidade prazenteira da hipermodernidade reside já esse mundo de uma pós-modernidade (que diferencio de hipermodernidade, que é para mim o que para muitos outros significa erradamente a pós-modernidade), na qual a verdadeira e peculiar Liberdade poderá ter origem. Não é esta obviamente a liberdade epistémica que o liberalismo económico propugna, com base em teorias libertaristas pouco inocentes que pretendem que somos flagrantemente responsáveis pelas nossas condições sociais e económicas, é antes uma Liberdade de raiz fenoménica primordialmente “simbólica”, que mesmo não deixando de poder ser ontologicamente verdadeira (com todas as repercussões ideomáticas que tal tem para uma epistemologia das ciências de cunho “sócio-hermenêutico”), é genuína sobretudo no sentido de uma intencionalidade cuja propensão ético-moral não poderá jamais ser negligenciada.
Mesmo podendo estar a confundir três conceitos não obrigatoriamente auto-implicativos – holismo, consciência e livre-arbítrio – ainda assim todos eles parecem ter responsabilidade decisiva nessa tão desejada “utopia” (será?...) de uma harmonia pós-moderna. Esta “harmonização” terá sido parcialmente compreendida pelos idealistas dialéticos – cujos principais pioneiros são Kant, na realidade genuína, e Hegel, na realidade mais completa e cabalmente aceite, – mas só verdadeiramente integrada mediante a ajuda do “pós-marxismo”, existencialismo, pós-estruturalismo e também das ciências cognitivas, cuja contribuição determinante para a construção da visão de um Eu consciente e intencional não poderia jamais ser elidida. Assim sendo, e não podendo já ninguém negar o papel de um Eu construtor ativo da realidade “real” (mesmo assumindo que o “interno” também é real…), sob os vórtices de um positivismo (“realisticamente ingénuo”) que se afirma fortemente pela via económica, mas jaz já ideomaticamente moribundo, esta tão adversada “pós-modernidade”, tão erradamente confundida com “relativismo moral”, não pode já deixar de se imiscuir com a necessidade de uma nova/velha Espiritualidade.
É certo que esta mesma Espiritualidade possui mais pendor fenoménico mentalista do que propriamente corpóreo-instintivo, até porque, decisivamente, a origem do mal não pode deixar de ser encontrada nos instintos e também na necessária relação dialética que estes estabelecem com a consciência ética de um mal que é visto enquanto tal (só esta consciência nos torna, supostamente, moralmente responsabilizáveis e legalmente imputáveis… coisa sempre eternamente discutível, se aceitarmos a ontologia de um “determinismo absoluto”, implicativamente desresponsabilizador) – o que nos tenta ao renascimento de um Platão que coloca no corpo a culpa de um agrilhoamento, aniquilamento da visão das essências, só na morte material potencialmente resolúvel, de resto condição vivificável pelo filósofo que exercita a renúncia aos prazeres carnais ou – para citar Kierkegaard – “estados eróticos imediatos” –, mas, ainda assim, não deixa de se poder conceber enquanto desiderato de um processo (também ele dialético) de equilibração monadística entre o corpo e a mente, a corporeidade pulsional e a consciência ética/racionalidade “gestáltica” (ou mais propriamente entre o corpo sentimental/proxémico e a consciência que, de qualquer modo, precisa dele para existir… monismo factual que as neurociências vieram, de algum modo, confirmar), o Eros e o Tânatos, o id e o superego, de resto uma harmonização que, como já se percebeu, a psicanálise/psicodinâmica viria a entender de modo peculiar e “respeitosamente” profano.
Daí que concebo que o crescimento da civilização no sentido de uma verdadeira pós-modernidade acarreta um trabalho de “divã”, potencialmente obtenível pelo exercício de uma religiosidade, a qual, mais do que manter o ser humano anquilosado num processo de neurótico “eterno retorno” às origens cosmogónicas (que se revêm nos rituais de reactualização das “origens”, revisitação regressiva que se pretende exorcizadora da angústia de separação perante a perda do “paraíso primordial”), deverá potenciar o desempenho de uma verdadeiramente evolutiva re-harmonização do Eu – individual e/ou coletivo – com o objetivo de, recuperando temporalmente o Absoluto, reencontrar o Homem com o paraíso original, no qual a verdadeira Liberdade e eticidade poderão ter lugar. Leia-se neste “reencontro do paraíso” não a reassunção do papel de Adão que a religião judaico-cristã proponente de um Deus relativamente omnipotente e babelicamente castigador propende (e que certas correntes gnósticas perceberam como erróneo nesse refluir da instituição de uma Igreja conluiada com o Poder e até a carnalidade) – até porque isto não significaria a Libertação –, mas antes a assunção da fusão com um Deus que tudo é e em tudo existe (semelhante à perspetiva funcionalista de Spinoza), que parece ser apanágio de religiões como o Budismo (apesar de esta religião ser de um panteísmo não teocêntrico), o que, em última análise, pressupõe que o Eu passa a ser o seu próprio Deus, e a Humanidade passa a ser a consciência criadora, instituidora da sua própria evolução, algo congénere com “o Superior a comandar o inferior”, citação de um Antero de Quental de «Tendências gerais da filosofia da segunda metade do século XIX» quase mediúnico, daquela mediunicidade rara que viria a ter o seu mais alto expoente “pós-moderno” em Fernando Pessoa (é certo que esta “iluminação” também existe em inúmeros homens do século XXI, mas também é certo que a nova aceitação da pós-modernidade, que a Física quântica viria legitimar em termos de tecido de uma “mor respeitável” cientificidade “neoclássica”, torna a nossa própria “mediunicidade” menos meritória).
Temos, assim, que, mais do que o encontro com o Sagrado, a assunção da pós-modernidade passa pela pura individuação ética do Eu individual e coletivo, que precisa mais do mito e do simbólico do que propriamente da instituição religiosa, sendo que passa para a “ordem do dia” tanto o relativismo epistemológico (morre o relativismo moral) quanto o absolutismo axiológico (morre o absolutismo epistemológico), com estes, numa visão mais rebuscada, a significarem o desafio da própria Física determinística, tanto em termos epistémicos quanto nos termos reais que a “levitação” parece representar; levitação, não só enquanto aproximação espiritual ao etéreo dos Deuses, mas enquanto acontecimento real que alguns propõem ser conseguido por certos budistas que, de algum modo, alcançaram a libertação ou iluminação absoluta (a qual, no mínimo, é preludiada pela perda dessa tão ridícula dependência – tradicionalmente ocidental – dos prazeres terrenos e dos bens telúricos).
Eis que a História passa a ser excrescência do Universal, tal como os ciclos de expansão e retração do Universo parecem ser de mote ad infinitum, com este Universo em que vivemos a ser talvez uma partícula integrativa de um Universo maior, e com esse Universo maior a ser partícula de outro Universo ainda maior, tudo isto ad infinitum, e com a base “micro-escalar” num caos quântico de partículas eternamente pequenas, divisíveis/decomponíveis ad infinitum em partículas perpetuamente mais pequenas. O homem está, tanto escalarmente quanto em termos de consciência livre e criadora de sentido, no centro do mundo e do Universo, o que, de algum modo, pressupõe – no momento futuro da individuação/libertação total e, portanto, no “fim da História” – a “morte de Deus”, a fusão da Vida com a Morte e também, eventualmente, a morte desse sentimento de solidão – o qual terá sempre alimentado a reactualização nostálgico-neurótica das origens mediante a prática ainda fulgente de rituais religiosos (só com o advento do liberalismo entretanto substituídos pela prática dos rituais próprios da modernidade capitalista, no formato da assunção de novas necessidades prazenteiras de consumo) – que deixa de existir, para passar a abraçar um novo “antropo-Centro”, este sim justo porque digno de uma consciência só feita de Valores e de transcendência.

Publicado, numa versão ligeiramente simplificada, na revista 'Biosofia', nº 41

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Deus/homem, Holismo/Reducionismo e Determinismo/Livre-arbítrio: improviso dialético

Se bem que alguns dos termos presentes no título do presente texto não obstem comumente à natural compreensão do filósofo, é comum tecer considerações – de cunhos diversos – que, inevitavelmente, demonstram que nem sempre certos conceitos são ou foram adequadamente compreendidos e distinguidos, tarefa, na verdade, hercúlea, se nos aventurarmos pelo território da dialética existente entre o Divino e o homem singular.
Sabemos, de um modo até bastante científico (leia-se de um tipo de cientificidade materialista, eventualmente positivista), que o mundo é essencialmente determinado por um conjunto de Leis prévias, com estas a perpassarem por um forte mecanismo de condicionamento do comportamento do homem, pelo menos na relação deste com o meio, e até no conjunto das suas relações psicossociais, isto se aceitarmos que estas são de carácter essencialmente demiúrgico, não obstante a franca complexidade de um conjunto quase inesgotável (mas não infinito) de intersubjetividades (estando já aqui presente o exemplo de um holismo que não acarreta libertarismo, se bem que a complexidade das variáveis relacionais em jogo possa induzir enganosamente a ideia de que existe libertarismo onde somente encontramos um tipo de indeterminismo virtual, que resulta da mera dificuldade ou até impossibilidade – temporária – de determinação, mas não da impossibilidade absoluta – pelo menos, ninguém, com toda a certeza, o poderá afirmar – da mesma determinação). Por qualquer motivo estranho, a identificação destas mesmas Leis conduziu muitas vezes ao ateísmo, não se percebendo muito bem por que forma é que a identificação das Leis do Universo e/ou do Homem poderá ser confundida com a existência ou inexistência de Deus.
Sabemos, igualmente, que as recentes descobertas da Física quântica são – ou tendem a ser – um desiderato interpretativo favorável à ideia de que existe o Livre-arbítrio, não obstante a possibilidade de o “Princípio da incerteza” ter sido mal compreendido, por mais uma vez se ter confundido Indeterminismo virtual com Indeterminismo de facto. Este mesmo ‘Livre-arbítrio’, que dificilmente poderá ser aceite como dominante no explicativo da ação humana (até porque pode simplesmente resultar de um erro de interpretação), é tido muitas vezes como “base científica” de um modelo epistemológico que podemos denominar de Pós-moderno, modelo que, no passado, já terei considerado como base da aceitação de um “regresso ao Espírito” (Biosofia n.º 41), no sentido em que o Pós-modernismo acarreta a assunção do ser-humano como um construtor ativo da (sua) Realidade.
Ora, é conveniente explicitar que esta perspetiva pode ser, de algum modo, reducionista, no sentido em que é proposto que o homem é o grande construtor da entidade divina, sendo que para esta edificação espiritual concorreria a relação dialética que o ser-humano Doxa (corpo) estabelece com o ser-humano Epistéme (mente) (segundo a “hierarquia do conhecimento” de Platão). Acrescentar-se-ia, até, que o nível ontologicamente mais elevado do “ser-humano Epistéme”, a Noésis (correspondente à razão intuitiva e contemplativa) é, segundo os dados neurobiológicos recentes, na verdade, igualmente dependente do corpo, no sentido em que a “Inteligência filosófica” (como muitas vezes prefiro apelidar) parece depender de uma relação neuropsicológica que se estabelece entre os níveis mais elevados da cognição e o resultado do sentir (adveniente dos dados obtidos por meio do corpo e captados nas áreas sómato-sensoriais do cérebro). Daí que, no livro «Corpo e pós-modernidade» (2012) tenha utilizado o conceito de racionalidade estética para me referir ao “Nous” platónico. Voltando à questão do reducionismo, este estaria presente (e até poderia ser compatível com o Livre-arbítrio), se, de facto, concebermos que a realidade Espiritual resulta da mera atividade pensante do homem, ampliada para um tipo de consciência coletiva e sociocultural de cunho apelidadamente “religioso”. Sublinhar-se-ia, aqui, que a semelhança entre os conteúdos da Espiritualidade e a fenomenologia do comportamento do Homem poderia ser explicada pelo processo de projeção no Espiritual (coletivo e religioso) do funcionamento neuropsicológico individual.
Contrariamente a essa visão reducionista (segundo a qual o Inferior explica o Superior), a visão Esotérica é dona de um maior holismo, pois que concebe que a atividade (noiética) do homem o aproxima do Divino, mas não o iguala a Deus, se não que o aproxima ou fusiona(rá) ao indizível. Assim, a visão ‘Esotérica’ propõe uma solução que força a humildade do homem, pois que o relaciona necessariamente com o Ser/Não Ser que o transcende e o explica. A visão ‘Esotérica’ não é sequer necessariamente libertarista, se bem que o Divino possa ser concebido como pura Liberdade (sobretudo liberdade relativamente ao separatismo dos níveis de maior materialidade e relatividade), pelo que a realidade “quântica” não é um pré-requisito obrigatório à aceitação do ‘Esoterismo’, antes é qualquer coisa que ajuda à aceitação do paradigma científico-epistemológico (pós-moderno e de natureza hermenêutica) que permitirá aceitar o tal – anteriormente apregoado – “regresso à Nova/Velha Espiritualidade”. Assim sendo, no Esoterismo, poderemos aceitar que existe Holismo/Uno associado a Determinismo, se bem que no nível mais monadístico já podemos conceber a existência de uma Liberdade, mas de um tipo diferente do Livre-arbítrio (a Liberdade resulta do Uno, mas o homem – individual ou coletivo – não possui uma liberdade de ação ou decisão, pelo menos segundo o ponto de vista “exotérico” a que estamos mais habituados; a tal Liberdade existe – sim – em Deus, porque somente este seria o Absoluto Ser e Não Ser, o que nos leva a pensar que, o número de Universos possíveis, ou seja, o número possível de potencialidades e, portanto, de Demiurgos, poderá ser, de facto, infinito).
Aponte-se que tanto a perspetiva ‘reducionista’ (mais próxima de um tipo de racionalidade científica a que o Ocidente nos habituou recentemente), quanto a perspetiva ‘holista’ são compatíveis com o comportamento moral, mas somente a visão ‘Esotérica’ permite a descentração antropocêntrica e ego-maníaca requeridas para a vivência Ética mais plena. Por outro lado, a vertente fortemente determinista que o nível da vivência Humana implica (por parte do Divino) obriga-nos – ou deveria obrigar-nos – à vivência mais compreensiva e harmónica, enfim… no Amor e na tolerância, pois que a consciência de uma Determinação “superior” e de uma responsabilidade prévia (Karma) desculpabiliza (?) as falhas de determinada encarnação… coisa que mais obriga à Compaixão do que à estulta desresponsabilização moral.

(Texto adicional de revisão ao primeiro apresentado, no prelo para publicação na revista 'Biosofia')