sexta-feira, março 31, 2017

A Fibromialgia existe? O doente "psicossomático" *

O que têm em comum a "fibromialgia" e a "homossexualidade"? Ambas implicam um "pathos" ("sofrer") íntimo, fantasmático, que é estendido, dilatado, pelas representações sociais relativas às duas condições, portanto, pelo "pathos" social. O "outro" que temos por dentro, a culpa, influencia e é influenciado pelo "outro" de fora, a sociedade. No caso da "homossexualidade", a culpa intrínseca é parcialmente nutrida pelas representações sociais da primeira; a sua despatologização pretende desligar parte deste processo. No caso da "fibromialgia", a culpa aspira ser desligada através de um processo de conversão, de transformação, de uma coisa "mental" "stricto sensu" numa coisa essencialmente "física" "stricto sensu".
Aproveito o facto descrito em https://www.publico.pt/2016/12/29/sociedade/noticia/fibromialgia-reconhecida-como-doenca-1756467 ("Fibromialgia reconhecida como doença") para mencionar a ponderação que a "sociedade" possui no prolongamento do "pathos" de cada um. Não querendo autenticar a sua "síndroma" enquanto mera (?) "depressão" (neste contexto, com caracteriologia, expressão, especialmente "física"), os fibromiálgicos, e as suas associações, sempre pressionaram a comunidade médica, e os clínicos em geral, no sentido de verem o seu "sofrer" ser patologizado/nomeado/identificado no molde de uma presumida "doença" com cariz autónomo, cujo reconhecimento enquanto tal permitisse apagar parte das representações mentais negativas que, geralmente, se atribuem a uma coisa tão aparentemente volúvel quanto a psicopatologia.
Mas a depressão (passe-se a "globalidade" do que o termo abarca) é tudo menos volúvel e, por vezes, o "pathos" que ela configura é tão desabrido que o paciente, inconsciente e/ou involuntariamente, acaba por convertê-la/o numa coisa emergivelmente "física" "stricto sensu", menos abstracta (se bem que a "sensação física" apela ao "abstracto") e, portanto, mais facilmente compreensível, partilhável e/ou aceitável. O mecanismo é interno e pode ser reconhecido em muitos pacientes, mormente naqueles em que a "evolução" é capciosa e tendente para a cronicidade. O mecanismo, como já vimos, é igualmente social, contribuindo este para perpetuar o anterior.
No início nem sempre é evidente. O paciente queixa-se de determinada(s) parte(s) do corpo, tratamo-la(s), a coisa melhora subitamente ou simplesmente nada acontece. No dia seguinte é outra coisa que dói, o paciente desgasta-se em pormenores e "sensações" geralmente infundados e irrisórios (apesar de subjectiva e semioticamente relevantes). Nada que seja evidenciado pelos exames já efectuados. Porventura, terá havido alguém que valorizou o pouco que os exames mostravam de "anormal" ou as apreensões do paciente, este ficou satisfeito, a coisa até pode ter melhorado, mas, mais tarde, tudo retornou. As dores mantêm-se e vão viandando por um corpo provavelmente tenso, o paciente mexe-se com cuidado e prevenção desmedidos (pode haver medo ou mal-estar, mas o paciente dirá, possivelmente, que não se sente deprimido; obviamente, também há a possibilidade de as manifestações físicas e mentais/emocionais se co-relacionarem, sendo, claro, por vezes, difícil de definir/discernir objectiva e subjectivamente o que é "físico" vs. "mental", até porque o físico é mental é físico, significantes de uma "mesmidade") e tudo se vai perpetuando numa demanda de intervenções (bastas vezes com resultados frustrantes, outros, estranhamente milagrosos) e de múltiplos profissionais de saúde (os quais, quase sempre vitimam o paciente com as suas teorias e paradigmas - ao invés de se disporem a um esforço de "síntese" dos diferentes dados, distintas pistas do raciocínio clínico -, contribuindo para prolificar ainda mais o conjunto das apreensões do sujeito). Se há algum que lobriga a irracionalidade (?) das manifestações (segundo o ponto de vista do raciocínio clínico mais costumeiro) e escolhe referir-se ao aspecto possivelmente mental, psicossomático, dos sintomas (coisa que, na, frequentemente não acontece - dado o imediatismo do sistema, do modo como se avalia e trata, bem como a mera componente metamorfoseante do paciente, que ilude continuamente o profissional -, o que até admira, não sejam todas as condições físicas irmãmente, senão causalmente, "mentais"), ele é presumivelmente repelido, o paciente dificilmente aceita que aquilo que tem é dominantemente psicogénico (sendo que o mal-estar que possa eventualmente existir é facilmente encarado como consequência, e menos enquanto correlato - e menos ainda como causa -, do problema físico) - embora possam ocorrer transitoriamente algumas suspeitas -, recusa usualmente a ajuda estritamente psicoemocional, se bem que a recebe "indirectamente" através dos multíplices terapeutas entretanto sondados (nem que seja mediante a componente psico-física das inerentes terapias - não obstante o facto de a via "física" propriamente dita conservar a problemática -, pela via do trabalho semiológico das manifestações, talvez menos pelo viés dos processos de relaxamento e outros que dimanam sobretudo a um nível cognitivo-comportamental). À falta de respostas, as terapêuticas não convencionais assentam que nem uma luva nas necessidades destes pacientes. E, assim, tornam-se comummente seguidores destas terapias, das suas explicações e filosofias, da dinâmica das suas soluções (a sua linguagem "ideal" é um "modus" de linguajar "psíquico", o nosso condicionamento "materialista" atribui-lhe uma importância ténue, mas, bem vendo, não é especialmente divergente da solução psicanalítica, identicamente abstracta, volúvel e "infalsificável"; quiçá os pacientes encontrem  o seu lugar dentro dessa "práxis"). Às tantas, convertem-se ao "new age", a estilos de vida alternativos, às "espiritualidades" salvíficas. E, por vezes, só assim chegam a entender derradeiramente que existe uma ligação corpo-mente inalienável, não integrando, no entanto, a sua "perfeita" condição "mentalista" (diz, claro, o velho preconceito "materialista"); procuram, quiçá, a resposta no "espírito" - que é, em suma, o próprio inconsciente, trasladado para níveis especularmente "superiores" e abstractos, funestamente promovidos pela semiologia esotérica -, e não tanto no "inconsciente", preferem os terapeutas das "vidas passadas" (que, não obstante, poderão operar metaforicamente a um nível inconsciente, representando as "vidas passadas" processos "ancilares" da vida coetânea) aos psicanalistas mais sistemáticos, as proposições mágicas às psicológicas "stricto sensu", a meditação transcendental à busca verdadeiramente íntima (egóica, claro, e, por isso mesmo, repudiada pela mesma espiritualidade que a sabe excrescente). Reconhecem a importância da "psique", mas de modo controverso, não "psiquificando" a sua condição, mas antes a "espiritualizando", sem deixarem de prover a sua causalidade "física"; assim, efectuam uma "fuga para a frente", não reconhecendo que é a própria problemática depressiva que explica tanto os sintomas como a busca do "etéreo", dupla defesa, dupla conversão, do mental ao físico e do mental ao espiritual, e, já agora, do físico ao espiritual (sendo que a conversão do materialista "psicodinâmico" poderia ser do espírito ao mental-físico, aqui a cegueira "psicanalítico-cêntrica" teria uma razão de ser "ideal" e "paradigmática" semelhante à da cegueira teomaníaca... quiçá, o paradigma "psicanalítico" corresponda à minha plena ilusão egocêntrica desindividualizadora, identitária), com o sobrepujar da etapa "emocional", talvez a mais difícil de ser vivificada integralmente; não que estes "espirituais" não assegurem a importância do "auto-conhecimento", mas portam-no para um lugar abstracto, sem que prevaleça uma verdadeira auto-análise, esta muitas vezes afrontada como perdulária, errática e aviltante, pois, afinal de contas, o "ego" é uma ilusão.
Não é que a coisa fosse necessariamente resolvida no divã, também, e sobretudo, aí as coisas se eternizam num labirinto de interpretações (tal-qualmente abstractas e mágicas - mas vivenciadas na carne autobiográfica e onírica do reconstrutor do terreno (super)egóico -, se bem que, sobrevindo de um psicanalista, enraizado num contexto de aceitação social e materialista, poderão ser encaradas de outro modo). O "mal" (socialmente visto enquanto tal) é profundo e ancilar (possuindo origem na mesma sociedade, a qual enforma as referências principescas/supergóicas, que julga "moralmente" o desajuste "culposo" ao contexto), há quem silencie o sintoma com o anti-depressivo, muitas vezes totalmente rejeitado pelos proponentes das "alternativas" (que se escusam aos métodos de um sistema arrostado como condicionador, propagador de "bonifrates" dessensibilizados), há quem se limite a adoptar a existência de uma doença que, supostamente, não possui cura e merece tratamento especial, incluindo os direitos estatais, tudo serve para evitar a conversão genuína da problemática ao abstracto, ao concreto dos sentimentos (que, não obstante, de pouco serve, visto que esse "concreto" é igualmente ilusório e impermanente). No caso do fibromiálgico, procura-se a aprovação social que o "espiritual" comuta num suposto estilo de vida "sustentável" e harmonioso. Iludidos estão ambos, mesmo o que parece "mentalizar" e, na verdade, transfigura a "espiritualidade" numa "religião". E iludidos se devem manter, como todos nós, pois prodigalizar a consciência é arriscar a implosão (por outro lado, aqueles processos poderão facilitar uma futura consciencialização); interessa, sobretudo, segurar a compensação, o que, demais a mais, nos leva a questionar o relevo de um texto que pretende "desiludir"... é que este foi escrito pelo "ego" e não pela "empatia", interessou ao autor arrumar seu próprio equilíbrio, sua intrínseca alucinação, ao invés do alheio. Se, para o paciente, o registo "espiritual" constitui o paradigma responsivo, de nada serve "irrealizá-lo", pois que o "ideal" é, para ele, tão "real" quanto é, para outros, o "positivo". O seu "ideal" é a sua linguagem, "espiritual" ou "psicodinâmica", tanto faz, com doença, espírito, medicamento ou holisticidade, persiste, desde sempre, o "ilusório", a fantasia com que podemos alimentar o futuro, de bengala na mão da (in)solução. Algumas soluções parecem mais certas e delongáveis, mas que diferença fará este "longo prazo" à vista de uma eternidade de transformismo polarizado? Achamos que somos especiais por concebermos o método dialéctico, porque o dominamos a algum nível, mas não somos categoricamente distintos do que voga na efeméride ou em "paraíso artificial", todos em seu plano ou amplitude, interessa, particularmente, fazer medrar o sofrimento, o resto é, mais uma vez, caso de aquiescência social, facécia de uma visão preconcebida do tempo e da virtude.


(* in «A Síntese (im)Perfeita. Sobre o tempo, a culpa e o Nada», Edições Mahatma, 2017)

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